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Agricultura digital, oligopólios e novas formas de exclusão

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"A agricultura digital concentrará todo o processo dos sistemas alimentares, dominando toda a cadeia alimentícia"
"A agricultura digital concentrará todo o processo dos sistemas alimentares, dominando toda a cadeia alimentícia" - Pixabay
O modelo do agronegócio fundido com a agricultura 4.0 tende a cada vez mais explorar terras

Está havendo uma rápida mudança na lógica de organização do negócio na agricultura, que nas últimas décadas foi hegemonizada pelo agronegócio: as denominadas novas formas de desenvolvimento no campo, principalmente a “Agricultura Digital”, ou  Agricultura 4.0. 

 Na agricultura digital, o negócio se adapta às novas tecnologias da informatização que vem para otimizar as atividades do campo por meio da conectividade, do sensoriamento remoto, do big data, entre outras ferramentas relativas à tecnologia da informação. Sem alterar o formato histórico da questão agrária e agrícola, estas novas ferramentas digitais vão aprofundar ainda mais a monocultura agroexportadora, e cada vez mais a primarização da economia dos países menos desenvolvidos.

O agronegócio vem se consolidando no Brasil a partir de uma aliança entre os grandes proprietários de terras, as empresas transnacionais e o capital financeiro, que controlam o mercado e os preços das commodities e dos insumos agrícolas dos mais diversos, desde o mercado de sementes transgênicas, a ração e o maquinário. Certamente, a agricultura digital ou agricultura 4.0 se somará a esta aliança com um papel preponderante, com domínio quase que total do controle das ferramentas digitais, inclusive as ferramentas de inteligência artificial.

O sistema de Big Data se somado ao modelo do agronegócio irá concentrar  todas as informações e dados que são processados de sua extensa rede de alcance, com vistas a direcionar a sua rede de influência e informação a favor da expansão do agronegócio brasileiro. 

Todo o controle das informações relativas à terra, ao meio ambiente, à agricultura e a pecuária ficará sob o controle das grandes corporações dos sistemas digitais que poderão, assim, direcionar com mais eficiência as políticas de manipulação de propaganda, sabendo qual determinado território é mais passível de aceitar a destruição ambiental, qual grupo de produtores é mais passível de aceitar experimentos com agrotóxicos, etc. Desta forma o agronegócio se fortalecerá ainda mais no seu papel central na economia capitalista global, de produção de matérias primas agrícolas e extração de recursos naturais, como na mineração e nas políticas energéticas.

Há neste processo um discurso hegemônico e eufórico com a rápida evolução das tecnologias digitais na agricultura: o da agricultura inteligente. Esse discurso se sustenta muitas vezes pelo fato de que boa parte das tecnologias de informática já são usadas na agricultura, inclusive muitas delas na agricultura familiar, nos assentamentos de Reforma Agrária, em associações e em cooperativas. 

A internet é utilizada nas mais diversas atividades, como comunicação pessoal, comercialização, aplicativos de gestão da lavoura, de agroindústrias e cooperativas, GPS, imagens de satélites, drones, sensores, chips em animais, entre outros. O conceito de agricultura digital, entretanto, vai muito mais além do que adaptar o trabalho agrícola a essas novas tecnologias.

A agricultura digital caminha para o que eles denominam como Agricultura de Precisão (AP), que na prática se trata de um novo pacote tecnológico para o agronegócio brasileiro, partindo da necessidade de aumento da produtividade e da padronização do modelo agrícola. Nos territórios do campo, a agricultura digital vai operar o maior desejo do agronegócio: aumentar a produtividade, avançar para formas modernas de mecanização e diminuir a contratação de força de trabalho. Sonham com um campo sem gente. Com isso, a alta tecnologia e a informatização vão proporcionar para o agronegócio mais lucro com menos trabalho humano.  Um dos objetivos da agricultura de precisão é fazer com que as lavouras sejam mais automatizadas e independentes.  

Em uma amplitude internacional, a agricultura digital concentrará todo o processo dos sistemas alimentares, dominando toda a cadeia alimentícia, desde a produção, plantio e colheita. Em relação a produção, esse controle se dará pela análise do solo via satélite, aplicações de fertilizantes e corretivos automatizados. Em relação ao plantio, essa agricultura orienta a aplicação de variedades de sementes para aumentar a produtividade, acompanhando a manutenção da lavoura, mapeando pragas e possíveis doenças, e conduzindo a aplicação de agrotóxicos. A colheita também será afetada, com máquinas modernas, sempre de últimas gerações, financiadas por bancos digitais, com sensores de produtividade. Logicamente que o controle da produção conduzirá uma tendência também ainda maior de controle do mercado, causando uma aceleração na tendência de monopolização e concentração de capital na agricultura global.

Esse processo também irá afetar fortemente a pecuária, em especial a produção de aves, suínos e bovinos, com pastagem controlada por satélites,  produtividade controlada por chips e centralização das informações sobre o transporte, a agroindústria e a comercialização. As grandes empresas de tecnologias digitais como a Amazon Web Services (AWS), Microsoft, Google e Alibaba estão desenvolvendo suas próprias plataformas de agricultura digital e cada vez mais operando no mercado digital de alimentos. 

Mesmo neste momento de crise econômica e crise sanitária, o mundo está há quase dois anos convivendo com pandemia, e à beira de uma crise alimentar e uma  crise econômica profunda. As grandes empresas de tecnologia digital entraram definitivamente para o mercado dos sistemas alimentares. Por exemplo, a Amazon  tinha uma participação no mercado de alimentos, antes da pandemia, de no máximo 5%,  atualmente já ultrapassa 50%. A JD.com, aliada a outras grandes do mercado internacional, cresceu 340%, sua atuação no mercado de alimentos.

Contradições

Podemos apontar duas contradições deste processo de controle digital dos sistemas alimentares: a primeira contradição é orgânica entre o agronegócio e a agricultura digital 4.0. Voltamos a um período recente dessa história, quando a burguesia agrária transita do modelo de latifúndio produtivista e agroexportador para o agronegócio, reorganizando o processo da produção na agricultura e causando com sua aliança com o capital financeiro uma grave contradição no seio da burguesia agrária. 

Nesse processo, o latifúndio atrasado, representado pela burguesia agrária mais conservadora e atrasada entrou em crise. Os latifundiários mais atrasados, que ainda mantém uma relação de produção extensiva, de pouco valor agregado, tinham duas opções: ou se adaptar e se ajustar a estas novas dinâmicas do agronegócio ou falir. 

A agricultura se vinculou ao capital financeiro justamente no período em que o processo de produção passou a ter menos importância na produção de lucro e menor peso na produção e na dinâmica da produção de  alimentos. O lucro, no processo de produção agrícola, pode ser dividido em três etapas: a etapa anterior à produção nas fazendas, como a produção de máquinas agrícolas, implementos, insumos, combustíveis, financiamentos, sementes; a etapa da produção em si; e a etapa posterior à produção, ou depois da porteira da fazenda, como por exemplo, o transporte, a agroindústria, o armazenamento, a distribuição e a comercialização. Nesse processo, o lucro em si da produção agrícola é estimado em apenas 15%, enquanto os processos depois da porteira possuem 65% e os processos antes da porteira 25%.

Nesta dinâmica, ou latifúndio atrasado se ajustava, ou aos poucos seria absorvidos pelo “moderno” agronegócio. Os que se mantiveram resistindo, perderam importância e as terras aos poucos foram colocadas nos mercados para expansão para o agronegócio. 

Alguns setores mais atrasados da burguesia agrária que não se adaptaram às mudanças, a exemplo de setores como o canavieiro, a pecuária extensiva, a carvoaria e outros. No Brasil, é justamente nestes setores mais atrasados, que não evoluíram para o agronegócio, em que estouram denúncias de trabalhadores vivendo em condições análogas ao trabalho escravo.

A Agricultura 4.0, por um lado, irá alterar ainda mais esse quadro, gerando certamente novas contradições. Uma  parte do agronegócio vai se ajustar, e se inserir quase que automaticamente ao modelo da agricultura digital, enquanto uma outra parte resistirá a esta nova dinâmica de organizar a produção agrícola e novas formas de se apropriar das riquezas geradas na cadeia da produção de alimentos.

  Esta nova tendência da agricultura digital vai vincular e integrar os interesses das grandes corporações de tecnologia às grandes corporações do agronegócio e do mercado de alimentos. A “velha” aliança que constitui o agronegócio: latifúndio, capital financeiro e capital industrial, agora, na era da agricultura digital, tem que ceder um espaço para mais um setor acumular o lucro produzido na agricultura: as empresas de tecnologias.Essa divisão, logicamente, não será um processo harmônico e certamente traduzirá mais concentração de capital, principalmente nas mãos das empresas de tecnologias que possuem hoje uma prática agressiva em termos de domínio de publicidades e marketing digital.

 A outra diferença, que é muito significativa, pressupõe que as empresas de tecnologia vão dominar todo o processo e etapas da cadeia produtiva de alimentos no mundo. Vão influenciar e controlar desde as indústrias que produzem maquinários e insumos para a agricultura; Irão impor e controlar o processo de gerenciamento e controle da produção no campo e ao mesmo tempo, controlar a fase posterior da produção que é a etapa mais lucrativa da cadeia produtiva do sistema alimentar. Além disso, algumas grandes empresas de tecnologia estão fazendo uma movimentação para entrar na etapa da produção. Estão comprando terras em países que permitem a venda para estrangeiros ou em parcerias com governos locais corruptos e entreguistas, para elas próprias produzirem alimentos.

A segunda contradição irá recair na agricultura camponesa. O modelo do agronegócio fundido com a agricultura 4.0 tende a cada vez mais explorar terras e as riquezas naturais dos países mais pobres, aprofundado ainda mais as desigualdades sociais e fundiárias, ampliando a fronteira agrícola e subordinando a periferia do mundo à produção de matérias-primas. Em consequência, aumenta cada vez mais a distância e diferença entre os modelos de produção do agronegócio, voltado ao lucro e a destruição dos recursos naturais com o modelo do campesinato, voltado à produção de alimentos saudáveis. 

Há uma tendência do modelo da agricultura 4.0 de ampliar ainda mais a padronização da alimentação no mundo, com sérias consequências na imunidade das populações, como podemos observar na pandemia de covid-19. A agricultura camponesa, por outro lado, irá  buscar produzir e consumir produtos alimentícios mais regionais, mais saudáveis, produzidos de forma orgânica e agroecológica, promovendo assim uma relação menos agressiva com o meio ambiente. Imaginamos que o mundo pós pandemia deverá valorizar mais a vida, a alimentação saudável, a defesa da natureza e uma relação mais solidária entre os trabalhadores do campo e da cidade.

 Temos que deixar sempre claro que nós, camponeses e camponesas, não somos contra as tecnologias e a mecanização, muito pelo contrário, tudo o que puder melhorar e aliviar o trabalho às vezes árduo no campo, deve ser bem vindo. Temos que ir adaptando as tecnologias e a mecanização para colocar a serviço da agricultura camponesa e das suas cooperativas. 

O  que nós combatemos é esse modelo, que produz monocultura, com alta produtividade, com base em agroquímicos, que destroem os solos e a natureza, e em consequência produz a alimentação contaminada, padronizada, com mutação genética. Combatemos o modelo de uma alimentação que virou mercadoria, commodities negociada nas bolsas de valores e controlada pelas grandes corporações. 

Nossa luta é pela soberania alimentar. Vamos continuar disputando na sociedade a ideia de que os camponeses no mundo inteiro poderão produzir alimentos saudáveis, promovendo uma relação saudável, ou menos agressiva entre os camponeses e camponesas que produzem alimentos. Continuaremos cada vez mais fortes, lutando contra este modelo perverso agressivo que concentra terra e riqueza, exclui os camponeses e promove destruição ambiental. O nosso projeto produz acima de tudo, vida digna no campo e soberania alimentar.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga