Paraíba

Coluna

O mito da democracia racial no Brasil

Capa do filme Menino 23. - Reprodução Adorocinema, 2016
O mito da democracia racial produz elementos deletérios

 

 

 

 

 

 

Por Nathan Schineider Ferreira Lopes 

e Aline Honório da Costa*

 

O documentário premiado “Menino 23 - infâncias perdidas”, dirigido por Belisário Franca, trata de uma investigação feita pelo historiador Sidney Aguilar, após descobrir que havia uma fazenda no interior de São Paulo com suásticas desenhadas nos tijolos do prédio. O título se deu devido à numeração dada ao Aloisio Silva, menino marcado desde a infância com o número 23, sem direito a sua própria identidade.  

O documentário revela um cenário de imensa tristeza ocorrido no Brasil, na década de 1930, no qual é apresentada a história de aproximadamente cinquenta meninos negros que foram retirados de um orfanato do Rio de Janeiro e escravizados pela família Rocha Miranda, em uma fazenda no interior de São Paulo. A família representada no filme era simpatizante do nazismo e membros da ação integralista brasileira em Campina do Monte Alegre, no estado de São Paulo. A ação integralista foi um movimento político brasileiro de ultradireita inspirado no fascismo italiano.

Desde a abolição da escravatura, em 1888, e a proclamação da República, em 1889, o estado brasileiro não oportunizou políticas de inclusão social para a população negra, deixando-os a mercê da própria sorte. Muitos homens e mulheres libertos se submeteram a permanência nas fazendas, nas quais haviam sido escravizados, ou buscaram melhores condições de vida, nos centros urbanos, em áreas suburbanas sendo submetidos aos trabalhos com menor valia salarial e precárias condições vida. Mesmo com o término da escravatura, o negro/negra continuou às margens da sociedade brasileira.

Esses são fatos apresentados em diversos trabalhos de diferentes autorias na historiografia e sociologia como Lilia Schwarcz, Ângela Alonso, Florestan Fernandes, Flávio Gomes, e tantos outros que discutem sobre a história brasileira.  
 


Capa do livro O espetáculo das raças. / Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho (arquivo pessoal)

  

O mito da democracia racial brasileira, como é atualmente debatido, foi retirado a partir da obra de Gilberto Freyre, apesar de Freyre não ser propositor original do tema. Em Casa Grande & Senzala o autor discute como se deu o processo de formação do Brasil e como a sociedade brasileira se concretizou, a questão do “cadinho das raças”, e que o encontro dessas raças produziria algo completamente novo, sendo esta novidade o brasileiro. Essa obra fomenta inúmeros debates de variados vieses quanto à existência ou não de uma democracia racial na formação social brasileira.

Após cem anos de abolição da escravidão, Abdias Nascimento, figura ilustre, negra, política e participante do movimento social negro nos congratulou com considerações bastante significativas durante as discussões sobre a Constituição Federal de 1988. Abdias Nascimento disse que o Brasil era o maior país de população negra fora da África, o que de fato ainda é irrefutável e, ao mesmo tempo, denunciava que o Estado brasileiro era racista. O sociólogo Florestan Fernandes concorda que o negro dentro da sociedade brasileira se torna um referencial para que haja medição da efetividade democrática, ou seja, olhando para a população negra, podemos verificar se o regime democrático brasileiro de fato está sendo exercido. Portanto, é importante entender politicamente que atrelado ao contexto racial o estudo das classes deve ser realizado, para que se projete um Brasil de sociedade igualitária e mais justa no futuro.

Nas redes sociais, é bem comum vermos a utilização de “hashtags”, como por exemplo, “#somostodosiguais”, alimentando o pensamento de que, socialmente falando, passamos por situações e vivemos realidades extremamente semelhantes dentro da organização social que compomos independente da etnia. Mas o correto seria questionar, “somos de fato todos iguais?” A essa altura outras perguntas se destacam: “será que a sociedade brasileira se organiza para a promoção da igualdade?” A igualdade nesse contexto, considera os direitos, as condições sociais dignas, saúde, segurança, moradia, educação e alimentação para a população negra? Levando em conta tais fatores, podemos de fato afirmar que somos todos iguais? 


Capa do livro de Abdias Nascimento. / Reprodução Editora Perspectiva

  

Consideramos ser de extrema importância colocar em discussão se vivemos essa igualdade ou só a desejamos, e se, mediante esse desejo, incentivamos práticas para tentar alcançá-la. Enxergando a forma como o racismo se estabelece e isso quer dizer, de forma estrutural dentro da organização das classes, se engana quem pensa que de fato somos todos iguais. 

O mito da democracia racial produz elementos deletérios, afastando a possibilidade da discussão da própria questão racial por achar que o equilíbrio já foi alcançado, principalmente, no campo da educação, campo no qual ocorrem muitas vezes as maiores e mais frequentes experiências racistas. 

As reflexões aqui apresentadas, estimuladas a partir dos fatos apresentados no filme, nos leva afirmar que o racismo no Brasil não será rapidamente superado ou extinto, pois, como já discutido, ele se autorregula dentro da sociedade, através dos meios de controle e consumo, fazendo com que a população negra persista na porção basal da pirâmide social. Portanto, as medidas mais viáveis para enfrentar esse problema devem ser ancoradas em proporcionar melhores condições de vida para a população afro-brasileira na tentativa de integrar, na prática, o conceito de equidade socioeconômica. O aumento do diálogo sobre as questões de valorização da cultura afro-brasileira e implementação da educação das relações étnico raciais na matriz curricular da educação básica, também é uma possibilidade de fazer a sociedade compreender sua história, fortalecer a identidade afro-brasileira e proporcionar o debate para demandas tão urgentes quanto ao direito à igualdade de oportunidades, desvelando-se o mito da democracia racial.

Referências

DA SILVA KERN, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes: o debate em torno da Democracia Racial no Brasil. Revista Historiador, [S. l.], n. 6, 2020. Disponível em: https://www.revistahistoriador.com.br/index.php/principal/article/view/142. Acesso em: 12 out. 2021.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. Brasil: Global, 2007. 320 p. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=PMZcBAAAQBAJ&lpg=PT3&ots=bbdAUV9UBF&dq=florestan%20fernandes&lr&hl=ptBR&pg=PP1#v=onepage&q=florestan%20fernandes&f=false. Acesso em: 13 out. 2021.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 42. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SCHWARCZ, Lilia Moritz: O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1931. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 

 

*Graduandos de Medicina Veterinária do CCA/UFPB. Membros vinculados ao projeto de extensão “Identidade afro-brasileira e enfrentamento do racismo: construindo novas relações sociais” coordenado pelos professores Ana Cristina Silva Daxenberger e Rosivaldo Gomes de Sá Sobrinho. 

Edição: Heloisa de Sousa