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Hora de retomar a luta pelo transporte público

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" O país estava às vésperas da primeira eleição após as revoltas de 2013, em que a pauta do transporte público tomou as ruas de centenas de cidades e entrou no centro do debate político" - Marcelo Camargo / Abr
Os exemplos brasileiros de tarifa zero mostram que a política é possível

Em meados de 2014, elaboramos as propostas de uma Política Nacional de Mobilidade Urbana, com o apoio de dois especialistas: Lúcio Gregori, que havia sido Secretário de Transportes de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), e João Luiz da Silva Dias, que havia sido presidente da BHTrans na gestão de Patrus Ananias (1993-1997), em Belo Horizonte. As propostas foram lançadas no site Mobilidade Brasil. O país estava às vésperas da primeira eleição após as revoltas de 2013, em que a pauta do transporte público tomou as ruas de centenas de cidades e entrou no centro do debate político.

Nosso diagnóstico era de que, sem subsídio ao transporte público, não haveria condições de prestar bons serviços à população e tampouco promover a universalização do acesso às cidades, às oportunidades de emprego, serviços de educação e saúde. Entretanto, a implementação de subsídios sem avanços na regulação, controle popular, efetiva gestão pública e mudanças nas formas de licitação, poderia resultar na drenagem de recursos públicos pelas empresas de ônibus sem melhorias dos serviços.

De lá para cá, muita coisa mudou no Brasil. Outras não saíram do lugar. Os sistemas de transporte coletivo urbano seguiram mal regulados, com licitações equivocadas que remuneram as empresas por passageiro transportado (confundindo receita com custo e estimulando a superlotação), sem fontes de subsídio público. É importante lembrar que nas cidades de diversos países que oferecem transporte público de boa qualidade, parte substantiva das receitas dos sistemas advém de subsídios públicos ou receitas extra tarifárias.

O modelo precário brasileiro seguiu em franca deterioração até ser atingido por uma pandemia, que escancarou sua ineficiência, falta de adaptabilidade e perversidade. Baseados, com poucas exceções, unicamente nas receitas dos passageiros, os ônibus brasileiros ajustaram a oferta com a queda da demanda, resultando em manutenção ou aumento das lotações. Um serviço essencial para o deslocamento da população tornou-se engrenagem de matadouro, contribuindo para espalhar o vírus.

A queda da demanda e as mudanças de hábito pós pandemia ameaçam levar ao colapso um sistema que já estava periclitante. Nesse contexto, atores da sociedade civil, de governos e do empresariado buscam encontrar soluções para o transporte público. O momento demanda a retomada do debate sobre políticas efetivas para regulação, gestão pública, controle popular e financiamento do transporte coletivo urbano, tomando as melhores práticas internacionais como referência.

Examinando as propostas apresentadas no Mobilidade Brasil em 2014, não deixa de ser triste notar a atualidade do documento. Apenas a primeira das propostas foi levada adiante, que é a aprovação da PEC 74, que inscreveu o transporte como direito social no artigo 6º da Constituição. Falta, entretanto, tornar esse direito realidade. A educação e a saúde não seriam direitos efetivos se houvesse catracas nas portas das escolas e dos postos de saúde.

Nesses sete anos que se passaram desde a elaboração da proposta, algumas coisas se moveram. Cada vez mais cidades mundo afora adotam o subsídio integral do transporte urbano, conhecido como Tarifa Zero. Hoje, o site Free Public Transport enumera mais de 150 cidades com situações de gratuidade (total ou de algumas linhas) do transporte urbano. A proposta revolucionária de Gregori e companhia vem se tornando realidade cada vez maior.

As maiores cidades que adotaram a política o fizeram nos últimos anos, como é o caso de Tallinn, capital da Estônia de quase 500 mil habitantes (2013) e Cascais, cidade de mais de 200 mil habitantes em Portugal (2020). No Brasil, Maricá, no estado do Rio de Janeiro, com mais de 160 mil habitantes, iniciou a transição para a gratuidade em 2013, também como resposta às revoltas de junho, enquanto Caucaia, no Ceará, cidade de mais de 400 mil habitantes, adotou a política em 2021. Luxemburgo tornou-se o primeiro país no mundo a universalizar a gratuidade no transporte em 2020.

Os exemplos brasileiros mostram que a política é possível, mas as melhorias efetivas só vão se disseminar e consolidar se houver uma estruturação nacional, que atue na regulação, construa fontes sólidas de subsídio e políticas industriais para o setor. Essas propostas estão apresentadas no documento do Mobilidade Brasil. Recentemente, uma nova proposta de subsídio tem sido colocada por Lúcio Gregori, que envolve a instituição de uma taxa ou contribuição pelo uso do sistema viário, uma proposta alternativa ao pedágio urbano – que teria caráter regressivo – de taxação dos automóveis pelo uso das ruas, que oneraria mais os veículos mais caros, espaçosos e poluentes, e que seria destinada a subsídio do transporte público.

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No dia 26 de outubro de 2021, dia nacional de lutas pelo Passe Livre, relançamos o site Mobilidade Brasil. Optamos por manter o texto elaborado em 2014. A proposta segue atual, em linhas gerais, embora mereça algumas atualizações. O importante debate sobre a busca por uma mobilidade antirracista e com igualdade de gênero avançou bastante no país e deve permear propostas como essa. Acreditamos que a atualização pode ser feita junto a outras entidades, movimentos e coletivos que atuam no tema, em um esforço de coalizão para pautar o ano eleitoral de 2022.

Que o caminho possa ser construído a muitas mãos e que a recuperação do Brasil após um momento tão grave da nossa história se dê junto à recuperação de um serviço público essencial para a população, que impacta diretamente as condições de vida dos mais pobres e cujo fortalecimento torna-se central para cidades mais justas e de baixo impacto ambiental, em contexto de crise climática.

 

João Luiz da Silva Dias é economista e foi presidente da BHTrans e da CBTU

Juliana Afonso é jornalista e militante do Movimento Tarifa Zero BH, organização articuladora da proposta do Mobilidade Brasil

Lúcio Gregori é engenheiro e ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo

Roberto Andrés é urbanista e professor da UFMG, foi membro do Tarifa Zero BH e um dos fundadores da revista Piseagrama

 

**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Larissa Costa