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O Império de olho na América do Sul

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O encontro de Mujica, Fernández, Kirchner e Lula tem o forte poder simbólico do renascimento da esquerda e do campo democrático na América do Sul - Foto: Ricardo Stuckert
O chamado “deep state” e o governo Biden se movimentam para enfrentar essa possível onda da esquerda

Lula, o ex-presidente e candidato favorito às eleições de 2022, participou de um grande comício de rua em Buenos Aires, junto com Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, Cristina Kirchner, vice-presidente da Argentina, e o presidente argentino Alberto Fernández.[1] A agenda, que teve seu ápice na histórica Plaza de Mayo, marcou a comemoração dos 38 anos de democracia na Argentina. Dia dedicado ao festival Democracia para Sempre.

Mais uma vez Lula produziu uma agenda internacional de alto valor tático e estratégico. Em novembro esteve na Alemanha, Bélgica, França e Espanha para encontros com parlamentares, chefes e ex-chefes de governo, lideranças políticas e jornalistas. O encontro de Mujica, Fernández, Kirchner e Lula tem o forte poder simbólico do renascimento da esquerda e do campo democrático na América do Sul após um forte crescimento da direita e da extrema direita.

Expressa também um duplo elemento estratégico. O princípio da defesa da democracia como base dessa aliança continental e a restauração da integração regional como prioridade política na agenda do continente.

Às pautas democráticas e da integração regional se aditam os desafios da igualdade social e da retomada do crescimento econômico. A onda de governos desenvolvimentistas e de centro-esquerda do início do século XXI permitiu gerar a ideia de que se tratava de um “continente da esperança”, nas palavras de Carlos Ominami.[1] Contudo, o crescimento da extrema direita e da direita tradicional no continente o jogou em uma profunda crise humanitária, em especial a partir da recessão econômica e da crise gigantesca da pandemia.

O enfrentamento à extrema direita e aos golpes, mais uma vez, está sendo feito pelas mais diferentes correntes e lideranças de esquerda. Dos liberais pouco se espera e de fato pouco fazem ou querem fazer. Essas esperanças de novo período de hegemonia de centro-esquerda recaem sobre as possibilidades da vitória de Gabriel Boric no Chile e de Lula no Brasil, as quais se somariam aos governos populares e antifascistas do Peru, Venezuela e Argentina.

O crescimento do campo democrático na América do Sul, contudo, não passa despercebido aos interesses conservadores e imperialistas dos Estados Unidos. O chamado “deep state” - conduzido por agências do Departamento de Estado - e o próprio governo Joe Biden se movimentam para enfrentar essa possível onda de governos não alinhados na América do Sul.  

Nesta mesma semana, o governo Biden organizou a “Cúpula da Democracia”, onde anunciou a criação da Coordenação Anticorrupção Global e um pacote de US$ 424 milhões para iniciativas de anticorrupção, reformas democráticas (sic) e de promoção de mídia independente. Trata-se de uma atualização dos mesmos mecanismos que permitiram a onda de golpes na América do Sul, como no Brasil, Paraguai e Bolívia e as tais “primaveras” que derrubaram vários governos soberanos e nacionalistas pelo globo. Processos de lawfare, desestabilização de governos populares e apoio às inverdades e influenciadores de redes reacionários continuam na paleta de operações políticas do Império.

Esse movimento demonstra que a reconstrução de um bloco de países na América do Sul em torno da recriação da Unasul e da defesa cada vez mais radicalizada da democracia é o caminho incontornável para que haja condições, tanto políticas quanto econômicas, para a retomada do desenvolvimento e a promoção da igualdade. Temas como comércio, taxação dos super-ricos, complementariedade econômica, imigração, justiça de transição, democratização dos meios de comunicação, soberania tecnológica, multilateralidade e cooperação na área de defesa são pautas essenciais e que devem ser tratadas, em conjunto com os atuais, pelos novos governos que podem assumir no continente.

Lula, com base nas agendas já realizadas e programadas, demonstra saber da importância de sua vitória e de seu futuro governo não só para o Brasil, mas para a América do Sul. Se considerarmos que as condições políticas e econômicas globais da atualidade são muito diferentes daquelas encontradas entre 2003 e 2014, maior será a importância e centralidade de um bloco de defesa da soberania e da democracia no continente. Neste próximo domingo, dia 19, o continente poderá dar um grande passo para esse novo ciclo. Força Chile, força Boric.

[1] OMINAMI, Carlos. Claroescuro de los gobiernos progressitas. Santiago de Chile: ed. Catalonia, 2017.

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko