Coluna

A opção preferencial do jornalismo pela bobagem

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A imprensa optou pelo caminho mais fácil e não resistiu ao canto da irrelevância - Roman Kraft / Unsplash
Nunca houve, na história recente do país, tantas pautas à espera de um jornalismo que as acolha

De nada vale a abundância de informações se não soubermos editar a avalanche que desaba sobre nós diariamente. Na verdade, faltam pás, escavadeiras e caçambas para nos livrarem do soterramento contínuo, brutal e implacável. Tudo piora porque, na Era das Redes, com o leitorado ladeira abaixo, a imprensa optou pelo caminho mais fácil e não resistiu ao canto da irrelevância, deixando-se cooptar pela bobagem em estado puríssimo.

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Rendeu-se ao universo de lantejoulas, nudes, bugigangas, traições e desavenças das celebridades da hora. E abriu mão de sua maior responsabilidade, a de buscar e oferecer  respostas imprescindíveis aos dramas do país. O que me provoca, enquanto leitor e jornalista, o desabafo a seguir:    

Não me interessa a joça do copo Stanley nem porque virou objeto de discussão.

Não quero saber quem é Jojo Todynho e com quem se casou.

Não sei nem me interessa saber se o Ano do Tigre no calendário lunar servirá para curar nossas mágoas.

Não sei quem é Tom Brady e não dou a mínima para quem sabe.

Não sei nem quero tomar conhecimento de quem são é o que fazem Scooby, Mia Khalifa, Yasmin, Eslovênia (!), Natália, Jade Picon, Vitão, Luiza Sonza e o escambau.

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Mas quero saber todos os nomes e patentes da quadrilha que trafica pasta de cocaína em aviões da FAB.

Quero saber quem assassinou a balaços os ambientalistas Zé do Lago, sua esposa Márcia e a filha Joena que protegiam as tartarugas no rio Xingu.

Quero saber quem são e se são milicianos os covardes que chacinaram a pauladas o trabalhador congolês Moïse Kabamgabe na Barra da Tijuca.

Quero entender as mortes estranhas e as fantásticas coincidências que povoam os dias e a história de Adélio antes da facada.

Quero saber se existe relação entre o liberou geral de Bolsonaro para o garimpo e a presença do PCC na Amazônia.

Quero saber se Sergio Moro, íntimo do Departamento de Justiça dos EUA, cometeu crime de traição ao país.

Quero saber que fim levou o porteiro do condomínio Vivendas da Barra.

Quero saber como, em dois anos de prisão, os assassinos de Marielle ainda não abriram o bico para cantar quem encomendou sua morte.

Há mais, muito mais, para saber.

Nunca houve, na história recente do país, tantas pautas à espera de um jornalismo que as acolha. Faltam recursos – dinheiro e profissionais -- para a chamada imprensa empresarial cumprir o que alardeia ser sua missão? Não. Falta apenas vontade. 

*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo