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Coluna

O golpe em Burkina Faso e o salafismo na África subsaariana

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O presidente de Burkina Faso, Roch Marc Christian Kaboré, em Ouagadougou, em 1º de Março de 2019 - Foto: Paul Kagame/Flick
O AFRICOM, um dos comandos combatentes permanentes na África, é uma ação nefasta dos EUA

O golpe militar em Burkina Faso reflete um problema estrutural nos países africanos, em especial nas regiões subsaarianas. Em 24 de janeiro deste corrente ano, o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, porta voz dos golpistas, anunciou a deposição do presidente eleito Roch Kabore, o fechamento do Congresso e demais instituições políticas, impediu o trânsito nas fronteiras do país e tornou invalida a Constituição vigente. A insubordinação militar teria sido decorrente de prisões de militares e agitação dos quartéis pelo descontentamento da população após seguidas derrotas para os salafistas locais.

Nos dias anteriores ao golpe, militares insurretos entraram em conflito armado contra forças ainda leais ao governo eleito. Nos meses anteriores, protestos populares terminaram em ampla repressão governamental contra a população civil. A delicadeza do momento legitima o ato dos militares.

A região está deflagrada. O centro do Sahel, composto por Mali, Níger e Burkina Faso estão sob constante ameaça destas mesmas organizações takfiristas. O caminho para o desastre parece evidente e são partícipes da problemática tanto a presença de redes salafistas como a permanente arrogância imperial de países como França e Estados Unidos. No texto que segue, trazemos evidências desta correlação.

Comecemos expondo as obviedades. Burkina Faso não é exceção e não tem cabimento argumentação eurocêntrica ou colonialista. Primeiro, de alguma forma, há uma crise na democracia representativa, e isso não é exclusivo da África, nem do Sul Global, mas de todas as sociedades que de alguma  forma reproduzem a fórmula liberal-democrática. Segundo, especificamente falando da “mancha salafista” no continente africano, trata-se de reproduzir teses absurdas, cometer haram o tempo todo e desfrutar de fundos e apoios inconfessáveis, na maioria das vezes, vindos de fortunas ou elites dirigentes aliadas direta ou indiretamente ao sionismo. Terceiro, a ação nefasta dos EUA ao estabelecer um dos comandos combatentes permanentes na África, o AFRICOM. “Curiosamente” quanto maior o alcance dos operadores militares do imperialismo, mais aumenta a presença de movimentos radicais salafistas, wahhabitas e takfiristas.

Desde o ano 2007, quando os EUA insuflaram a invasão da Somália e acabaram com a nascente jurisdição da União das Cortes Islâmicas que a presença de redes alinhadas com a Al Qaeda e, a partir da década seguinte com o Daesh, só faz crescer. Na ocasião, o Comando Africano, operando através de sua base em Manda Bay (Quênia), promoveu a intervenção militar tendo a União Africana como ponta de lança. O resultado foi nefasto, aumentando o poder da Al Shabab (rede terrorista salafista afiliada a Al Qaeda), fragilizando a estabilidade política e securitária do território queniano.

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A outra marca da presença da OTAN está na ação contra o governo do tenente coronel formado na Inglaterra, Muamar Gaddafi, e a promoção de “bombardeios humanitários” na Líbia. Em abril de 2011 e nos meses seguintes, a aliança ocidental garantiu que a impopularidade do líder se tornasse uma ampla guerra civil e promovendo a política de terra arrasada a partir da destruição de Trípoli. O resultado do desmonte da Jamahiriya foi e é uma permanente guerra interna, com dois ou três setores de acordo com o período e total subordinação internacional. Para piorar, a distribuição do arsenal de governo deposto ficou fora de controle. Na última etapa da guerra, a convocação para a defesa do anel mais concêntrico de Gaddafi resultou em disseminação de armas leves além das fronteiras líbias. Os nexos do extinto regime instaurado com a derrubada do Rei Idris I em 1969 ultrapassam o Saara e a guerra pós-colonial do Chade (1978-1987) – com vitória da facção pró França – evidenciam esse grau de letalidade.

Um dos efeitos diretos da prática de terra arrasada na Líbia chegou até o Mali. Na crise de 2012, o império de Paris evocou a sua razão de “Françafrique”, enviou efetivos da Legião Estrangeira e regimentos coloniais de paraquedistas. Primeiro enviou “consultores” e no ano seguinte, tropas ostensivas. Ao invés de promover a União Africana ou as forças conjuntas da ECOWAS (Bloco dos países da África Ocidental), o então presidente François Hollande mandou tropas profissionais e em tese, afastara em definitivo o perigo de que takfiristas venham a tomar a capital Bamako.

A trama realmente é intrincada. A Al-Shabab originária da Somália, têm uma enorme difusão através das redes sociais e do imaginário do ocidente a partir da desgraça promovida pelos estadunidenses em Mogadíscio entre 1992 e 1993, repetida na primeira década do século XX. Ao invés do que prega Washington, o acionar imperial não decorre da manhã de 7 de agosto de 1998. Nesta data ocorreram dois atentados promovidos pela Al Qaeda contra as embaixadas estadunidenses, em momento quase simultâneo, em Nairobi (capital do Quênia) e Dar es Salaam (capital da Tanzânia). O AFRICOM é tão capaz de operar de fato, que esconde seu comando operacional em base na Alemanha. Todo esse conjunto de absurdos é utilizado como ferramenta de propaganda e recrutamento não só da Al Shabab, mas da Boko Haram (Nigéria) e demais braços operacionais das redes wahabbitas.

Não se trata das guerras civis tristemente ocorridas nos países após sua independência formal. Tampouco das clássicas manipulações dos partidos e lealdades étnico territoriais, muitas vezes insufladas por interesses de transnacionais ou jogos de poder clássicos entre diplomatas, mercenários e governos fracos. Estamos diante de um fenômeno distinto.

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Existe população islamizada na África há mais de mil anos e somente nos últimos trinta o salafismo usurpa as palavras do profeta e promove takfirismo armado. Os terroristas confrontam forças regulares com baixo orçamento, o que gera descontrole da tropa e acentua a separação entre a elite dirigente, os servidores do Estado e a população desassistida. Simultaneamente, as maiorias estão descontentes e as minorias ameaçadas de perder sua posição e o status quo.

Transnacionais operando nestes países entram em pânico se não conseguem negociar, e podem vir a deixar o país, como ocorreu com a Total em Moçambique. Em abril do ano passado, a gigante francesa decidiu abandonar a região de Cabo Delgado, no norte do país de Samora Machel, responsabilizando o governo de Maputo de não conseguir garantir a segurança de suas instalações e funcionários. A Al Shabab Moçambicana conseguiu em duas campanhas o que a RENAMO não obteve após retomar o conflito interno em 2013.

Apontando conclusões óbvias 

Não se pode responsabilizar aos absurdos salafistas a todos os problemas em termos econômicos, políticos e securitários dos países africanos onde atuam os terroristas. Menos ainda promover um discursos colonialista onde a dádiva das intervenções das potências ocidentais resolveria alguma coisa. Tampouco as instituições republicanas nos países do continente irmanado com a América Latina são muito mais fortes do que as existentes deste lado do Atlântico.

Obviamente os EUA e OTAN não são confiáveis para combater os aliados de seus aliados. E especificamente as potências decadentes da França, Inglaterra, Bélgica, Portugal, Espanha, Itália e Dinamarca têm as mãos manchadas do sangue desde os tempos da colônia e da escravidão. O terror salafista é instrumento de chantagem externa e seus financiadores são perfeitamente reconhecíveis e identificados. A solução no curto prazo é a cooperação através da União Africana, da ECOWAS e demais alianças entre países do continente. No médio e longo prazos, a cooperação Sul Sul é único caminho.

* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio

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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko