Coluna

Em cima do Muro de Berlim

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Enquanto alguns militares recomendavam manter apoio à Rússia, o general Braga Netto se aliou ao olavista Filipe Martins para sugerir apoio à Otan - Marcos Corrêa/PR
O impasse do governo se reproduz, obviamente, no discurso errático da diplomacia

Olá, os bolsonaristas dormiram sonhando com a “revolução ucraniana” e acordaram abraçados com Putin. Mas, cuidado! Com a economia indo de mal a pior e as eleições logo à frente, Bolsonaro ainda pode cair do muro. Leia ouvindo Trio Parada Dura

.De que lado você samba? A confusão ideológica que o conflito na Ucrânia causou no bolsonarismo pode ser medida pela opinião de dois dos seus ícones. O ex-assessor de Flávio Bolsonaro, Fabricio Queiroz, demonstrou ter mais familiaridade com contabilidade do que com geopolítica, afirmando que a Ucrânia é “um governo de esquerda que desarmou o povo”. Já o último cavaleiro templário Ernesto Araújo reclamou da “preferência” de Bolsonaro pela Rússia. A divisão se estende à ala fardada do governo: enquanto alguns militares recomendavam manter o apoio à Rússia, o general Braga Netto se aliou ao olavista Filipe Martins para sugerir o apoio à Otan, assim como o general Mourão. O problema está no próprio bolsonarismo. Como todo fascismo, ele é um sistema de ideias frágil, que responde a problemas complexos com polaridades simplórias. Contudo, no caso da Ucrânia, “mamadeira de piroca” ou “a culpa é do PT” não cola. Helena Chagas aposta que a guerra causará comoção no eleitorado brasileiro e que Bolsonaro sairá perdendo. Mas a oposição também tem seus problemas. Ainda que a terceira via tenha apoiado a Otan e mesmo que Lula tenha feito um apelo à paz mundial, Alon Feuerwerker lembra que, além das relações do Brasil com a Rússia, em especial no Brics, um outro fator importante é que Joe Biden não confia em nenhum presidenciável brasileiro e vice-versa. Em tese, o melhor caminho seria optar pelo equilíbrio e pela distância. Mas, hoje, ambas posturas são lidas como um posicionamento pró-Rússia. O mais provável, estima o professor David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita, é que o bolsonarismo ajuste o seu discurso, reconhecendo em Putin um líder viril, conservador e anti-minorias capaz de enfrentar a Nova Ordem Mundial, os reptilianos e os illuminati, segundo o próprio Bolsonaro.

 

.Perdidos no tiroteio. O impasse do governo se reproduz, obviamente, no discurso errático da diplomacia. É verdade que o Brasil ficou do lado de outros 140 países que condenaram a ação da Rússia na ONU, mas a diplomacia brasileira também criticou as sanções econômicas e o envio de armas pela Otan. E, mesmo em um caso em que é óbvio o que deve ser feito – retirar os brasileiros da zona de guerra – a diplomacia não faz nada. Na escala de prioridades do governo, os brasileiros no exterior estão abaixo dos fertilizantes, estes sim, tirando o sono do agronegócio bolsonarista. Como 73% dos fertilizantes consumidos no Brasil são importados, a instabilidade do comércio mundial causa calafrios. Ainda mais porque 23% desses insumos vêm da Rússia e outros 20% de Belarus, que já avisou que está impedida de exportar por conta das sanções europeias. Além disso, o funcionamento de uma fábrica russa de fertilizantes no Mato Grosso do Sul, comprada da Petrobras, também está em risco. O preço do produto, que já subiu 155% nos últimos anos, deve aumentar ainda mais. Num gesto de autocrítica tardia do agronegócio, a ministra Tereza Cristina admitiu o erro de chegar a tamanha dependência externa. E Bolsonaro aproveitou a ocasião para pedir urgência no projeto que libera a mineração em terras indígenas, usando a demanda por potássio para fertilizantes como justificativa. Além dos fertilizantes, os embargos às exportações de trigo da Rússia vão atingir o Brasil e devem alavancar o preço dos alimentos. Com tudo isso, somos o país latino-americano que mais deve sofrer os efeitos econômicos da guerra, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Além dos alimentos, o dólar pode disparar, assim como o preço do barril do petróleo. Um coquetel molotov numa economia já combalida.

 

.Pé na areia, água de coco, beira do mar. O que fazer quando o mundo está em tensão por causa de uma guerra e o país está assolado por soterramentos e por uma pandemia que não tem fim? A resposta de Jair Bolsonaro é relaxar e curtir cinco dias de férias no Guarujá. A conta, afinal, vai para os cofres públicos. Só as férias, há pouco mais de um mês, custaram R$ 900 mil. Isso sem contar os rolês da família nos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). E não há problema nenhum em se ausentar tanto tempo. Afinal de contas, o Congresso vive em um universo próprio, tratando diretamente com Ciro Nogueira e Arthur Lira, tanto que o governo sequer tem líder no Senado há quase dois meses. Enquanto o STF faz tabela com o Congresso, garantindo a constitucionalidade do Fundo Eleitoral, o ministro Nunes Marques só precisa engavetar ou pedir vistas para os temas que são de interesse do governo. E para o Estado funcionar no piloto automático, o essencial é ter gente de confiança nos cargos-chave. Finalmente, Bolsonaro e filhos realizaram o sonho de ter um homem de total confiança na já não pouco partidária Polícia Federal. O novo diretor já chegou mostrando trabalho, trocando o responsável pelas investigações sobre a famiglia. Bem descansado e mesmo com o mundo em ruínas, Bolsonaro vai poder se dedicar ao que realmente lhe interessa: a própria campanha de reeleição. E três temas espinhosos esperam por ele. O primeiro é o descontentamento da bancada evangélica, irritada com a posição do governo e do centrão sobre o PL dos jogos de azar. Depois, o governo deve sofrer a baixa de pelo menos 25 ministros e secretários que disputarão as eleições, o maior esvaziamento do Planalto dos últimos anos. E, por fim, até o fim do semestre, precisa escolher o seu vice entre os favoritos dos militares, do agronegócio e dos evangélicos. Decisões difíceis. Não se surpreenda se Bolsonaro continuar no Guarujá.

 

.A janela está aberta. Passado o carnaval, a abertura da janela de transferências partidárias acelera a disputa presidencial, com os palanques estaduais no centro do tabuleiro. Os candidatos com pretensão à Câmara e ao Senado vão buscar acolhida nos presidenciáveis mais pujantes ou nas siglas partidárias mais promissoras. Além da previsão de perda de 10 parlamentares, o encolhimento do PSDB não ficará só no Congresso. A guerra intestina que João Dória comandou nos últimos anos pela direção do partido vai cobrar um saldo maior do que o naufrágio na corrida presidencial. Depois da saída de Geraldo Alckmin, que também precisa escolher seu destino neste mês, devem sair aliados do governador gaúcho Eduardo Leite, que pretende ir para o PSD mesmo com resistências na base nordestina do partido, e os tucanos bolsonaristas que devem se aninhar no PL. Aliás, o partido de Valdemar da Costa Neto e Bolsonaro deve ter o maior crescimento, saltando de 43 para 60 deputados, abrigando os bolsonaristas mais fiéis de outras legendas, como a União Brasil, que deve perder 28 deputados. Mas essa corrente migratória também traz novas preocupações ao PL, como a possibilidade de entrada de potenciais traidores  num partido recém convertido ao bolsonarismo. Na esquerda, os candidatos do PCdoB e PV pressionam para que a Federação com o PT saia de uma vez, mesmo sem o PSB, do contrário, devem esbarrar na cláusula de barreira. O que pode levar a uma debandada de verdes e comunistas para o PT, sendo abraçados por um Lula livre, leve, solto e agora sem pendências com a Justiça. Em situação parecida está a Rede, que flerta com PSOL e com o cirismo e que, se demorar para resolver a vida, também pode perder filiados. Teve início a contagem regressiva.

 

.Tem, mas acabou. Depois da festa, a ressaca. Apesar do cancelamento de desfiles e festividades oficiais por prefeituras e governos, blocos tomaram as ruas em capitais tradicionais da festa, como Rio de Janeiro e Salvador. Além disso, as restrições por razões sanitárias reforçam a tendência de privatização da folia, já que as festas públicas estavam proibidas, mas as aglomerações pagas foram liberadas em várias cidades. Porém, a possibilidade de que se repita o cenário do ano novo, que impulsionou a disseminação da variante ômicron, é grande, segundo os epidemiologistas. Outro fator determinante para o futuro da pandemia é a volta às aulas presenciais. Muito mais preocupados com o saldo político das medidas, reitores nomeados pelo governo Bolsonaro tem flexibilizado as medidas para o retorno dos universitários, em alguns casos proibindo a cobrança do passaporte vacinal, enquanto o governador gaúcho Eduardo Leite decidiu desobrigar a exigência de máscaras para crianças entre 6 e 11 anos. O clima de “já acabou” contrasta com os números reais: com 22 mil óbitos, o mês de fevereiro registrou o maior número de óbitos por Covid desde agosto. A situação parece mais grave ao levarmos em conta que o impacto e os efeitos da doença ainda estão sendo descoberto, a exemplo do grande número de mulheres gestantes afetadas pela doença no continente americano. Segundo o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, a transição da pandemia para uma endemia depende exclusivamente do avanço da vacinação. Até o momento, o país tem 72% da população totalmente imunizada, mas apenas 29% com a dose de reforço. No estado do Pará, por exemplo, o índice com a terceira dose não passa de 12%. Temporão lembra ainda que, por se tratar de um evento global, a redução da letalidade da pandemia depende também de superar a desigualdade vacinal em nível internacional.

 

.Ponto Final: nossas recomendações.

.Eles queriam 'ucranizar o Brasil', mas tiveram de engolir Putin. No Intercept, João Filho lembra da admiração bolsonarista pela Ucrânia.

.A guerra na Ucrânia vista pela Rússia. Luis Nassif entrevista o historiador Rodrigo Inhanez, censurado pela Globonews, sobre a versão russa do conflito.

.Facebook libera elogios a neonazistas na Ucrânia contra Putin. No The Intercept, como o Facebook permitiu as publicações do grupo neonazista ucraniano Batalhão de Azov durante o conflito com a Rússia.

.Graziano: fome no Brasil pode chegar a "situação explosiva". Para o ex-diretor da FAO e do programa Fome Zero, só programas sociais não são suficientes para combater a fome, é preciso crescimento e renda.

.Jonatas e o massacre no campo. A Piauí demonstra como a desregulamentação fundiária e o incentivo à grilagem no governo Bolsonaro estimularam a violência no campo.

.O Congresso e a lei de cotas. No Nexo, João Feres Júnior e Joyce Luz falam sobre o futuro da lei de cotas, que está completando 10 anos e já conta com 30 propostas legislativas para alterá-la.

.90 anos do sufrágio feminino no Brasil: 4 ícones da longa luta das mulheres pelo direito ao voto. A BBC recupera as trajetórias de Nísia Floresta, Leolinda de Figueiredo Daltro, Bertha Lutz e Almerinda Gama para contar a história do sufrágio feminino no Brasil.

 

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*Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho