Minas Gerais

Coluna

Pandemia escancara crise de cuidados e desigualdade de gênero, temas pouco estudados

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Mulheres negras foram as mais prejudicadas - Foto: Governo do Estado do Mato Grosso do Sul
Não é possível falar em inclusão mas continuar defendendo a austeridade fiscal

Neste 8 de março, é importante lembrar o quanto as mulheres absorveram os choques trazidos pela crise da covid-19 no Brasil, seja pelas questões estruturais da sociedade brasileira (que se baseia em uma divisão sexual do trabalho, que relega às mulheres o trabalho doméstico e de cuidados), seja pelos mais recentes cortes das políticas de promoção da igualdade de gênero e racial, com a austeridade fiscal (política de ajuste da economia por corte de gastos ou aumento de impostos, ocorrendo no Brasil desde 2015 a partir de corte de gastos).

Austeridade e questão de gênero

Além de ser um contrasenso do ponto de vista econômico, a proposta de corte de gastos sociais tem um dilema ético grave: estamos em um país com gravíssimas vulnerabilidades sociais, no campo da saúde, educação, saneamento, direito à cidade, e a lista continua.

Primeiro alvo no Brasil dos neoliberais é o gasto social

O projeto de país que vem com a austeridade não é benéfico à grande maioria da população. Pelo contrário, ao impedir o crescimento real do gasto social (ou determinar a queda do gasto social per capita pelo aumento da população brasileira) mesmo que o PIB cresça, a Emenda Constitucional 95/2016 (constitucionalização da austeridade), prejudica mais os pobres, prejudica mais as mulheres, prejudica mais os negros, as populações indígenas, aqueles que não têm outra opção a não ser o serviço público.

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A austeridade agrava as desigualdades de gênero, raça e classe e representa um retrocesso na garantia dos direitos humanos. Quem cuidará das crianças, dos idosos, quem sofrerá com a sobrecarga pelo corte das políticas públicas? A EC 95/2016 quebrou a vinculação constitucional do financiamento da educação e da saúde públicas. A quem isso prejudica?

Poder do patriarcado, que relega as mulheres ao trabalho doméstico e de cuidados, segue firme

Diante deste quadro de desfinanciamento, há, claro, as falsas soluções. A mídia por exemplo tem se aberto muito para discutir os temas da desigualdade de gênero, racial, regional etc. No entanto, o arcabouço econômico para o qual acabam dando espaço é incongruente com a redução dessas desigualdades. Não é possível falar em inclusão mas continuar defendendo a austeridade fiscal, que tem sempre como primeiro alvo no Brasil o gasto social.

Apesar da virada no discurso econômico no exterior (vindo de governos do norte global e de organismos internacionais), no Brasil os analistas econômicos na mídia comercial criam um clima de medo e coação a favor dessa agenda: afirmam que o país está à beira da insolvência; que a hiperinflação retorna se aumentarmos os gastos públicos, apesar do desemprego e da falta de demanda; e que o fim do teto de gastos pode levar a uma depressão econômica, etc.

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Portanto, é importante frisar que não é só o discurso autoritário que tem florescido no Brasil que tira recurso e tira da pauta o orçamento para a área social: o discurso da austeridade também, e mais, ele dá uma suposta capa técnica para esses cortes e ajuda a manter ou aprofunda as desigualdades de gênero e raciais. Ou poderia, absurdamente, a queda do orçamento pra políticas de igualdade racial e de gênero que tivemos a partir da EC 95/2016 ajudar na luta contra a desigualdade?

Além disso: se fossem os homens os maiores prejudicados com o corte das políticas públicas, seria esta política levada a diante?

Divisão Sexual do Trabalho e a pandemia

A economia é uma ciência social que trata de descrever e atuar sobre como se organizam as sociedades, a partir de valores e objetivos socialmente construídos. Por exemplo, incluir a redução das desigualdades (inclusive de gênero) como um objetivo central ou não é um juízo de valor, é uma decisão. Assim, o que passa a entrar na agenda da sociedade influencia totalmente a economia e a ciência econômica.

Mas a economia é ainda um campo extremamente hostil para as mulheres, tanto para as mulheres economistas quanto para discutir os temas de gênero. Teriam sido aplicadas as políticas de austeridade no Brasil, com forte impacto na proteção social e nas políticas de igualdade, caso o tema do gênero fosse central na economia? Caso mais mulheres fossem escutadas?

Mas o poder do patriarcado, que relega as mulheres a uma posição subalterna e impõe socialmente que as mulheres sejam as responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados, segue firme. Mesmo passando pela pandemia, que escancara a crise de cuidados, o tema do trabalho doméstico e de cuidados segue pouco estudado, pouco valorizado e sem ser considerado trabalho quando feito de forma não remunerada.

Como discutem Manzo & Minello (2020), mesmo quando a divisão sexual do trabalho mostra seus limites intrínsecos, como durante esta crise, ele permanece em seu lugar. O trabalho doméstico e de cuidados, se não remunerado, continua a ser tratado como algo fora do Produto Interno Bruto, como “forma de amor”, como obrigação social feminina.

Como pode ser que, diante de tamanho choque que foi/é a covid-19 e da importância deste trabalho, que a divisão sexual do trabalho permaneça tão forte e que as mulheres sigam absorvendo a maioria do impacto do aumento do trabalho doméstico e de cuidados?

Estes dois fenômenos (a austeridade fiscal de um lado e o patriarcado de outro) ajudam a explicar por que, durante a crise, as mulheres foram mais afetadas que os homens em termos de redução de horas no trabalho remunerado, aumento do tempo gasto com trabalho doméstico e de cuidados, não compartilhados de forma igualitária entre os membros do domicílio, levando a ainda maior sobrecarga das mulheres e aumento da violência doméstica.

E, em um país em que a questão racial é um marcador extremamente importante por quase 400 anos de escravidão que terminaram sem nenhuma espécie de reparação, as mulheres negras foram as mais prejudicadas neste contexto.

Neste 8 de março, nos compete usar todos os espaços possíveis para discutir esta questão.

Ana Luíza Matos de Oliveira é economista pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestra e doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, com estudos na Índia e na Alemanha

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida