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O caso Pedro Castillo no Peru e os limites dos governos que não se apoiam no povo

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Pedro Castillo comentou a aprovação da abertura do processo de vacância presidencial durante ano de início do ano escolar 2022, na segunda-feira (14) - Presidência Peru
Assim como no Brasil, este debate é central, na relação entre governo e convocatória às massas

O Peru segue em crise, que agora recai sobre um governo que recebeu as esperanças da esquerda no continente e parecia somar-se no mesmo sentido da retomada do governo na Bolívia e das lutas do período recente no Chile e na Colômbia.

Analisar o que acontece na condução dos governos de esquerda dos países vizinhos é importante também como referência para o próprio caso brasileiro.

Nesta semana, ocorreu o segundo pedido pela destituição do governo Castillo, que mal completa um ano, eleito em 2021, após polarização e vitória por menos de um ponto contra a extremista de direita Keiko Fujimori.

Desta vez, a proposta foi aceita pelo Congresso. Por 76 votos a 41, os parlamentares emplacaram acusações de “conspiração” e de “tráfico de influência” contra Castillo. Enquanto sete partidos são protagonistas nesse pedido, apenas três são contrários à retirada do professor rural e sindicalista do governo.

Agora, para destituir o presidente legitimamente eleito serão necessários 87 votos favoráveis do total de 130 congressistas. Embora o partido governante Peru Livre tenha a maior bancada do Congresso, com 37 deputados, ainda precisa de apoio de outros sete parlamentares para impedir o impeachment/golpe.

Em pouquíssimo tempo, a vantagem da direita no Congresso já derrubou anteriormente presidentes de outras tendências ideológicas, caso de Pedro Pablo Kuczynski, em 2018 e, em 2020, Martín Vizcarra. 

Um programa correto, mas sabotado

É certo que a expectativa era grande com o processo eleitoral que levou o Peru Libre e Castillo ao governo. Com forte base social, a partir das comunidades camponesas exploradas no interior do país, as chamadas Rondas Camponesas, o que levou o sindicalista ao segundo turno, sem nenhum trabalho midiático, do que se pode concluir que a vitória de Castillo foi resultado de inserção, mobilização popular e da profunda crise e instabilidade institucional e social.

Contraditoriamente, o redemoinho da crise agora pode carregar o próprio governo junto, pelos previsíveis ataques da oposição e da mídia. E parece correto afirmar também que o governo cai pelo previsível método, comum a governos de esquerda que não avançam na direção do poder, de recuar e conceder diante da pressão do inimigo, buscando a estabilidade institucional. Até capitular.

“Não convocou o povo nem mesmo para garantir diante dos tribunais corruptos a defesa de sua conquista nas urnas”, aponta, corretamente, em sua conta de Twitter, o pesquisador Nildo Ouriques, do Instituto de Estudos Latino-Americanos (Iela).

O processo eleitoral ainda foi marcado pela mística de uma campanha de povoado em povoado, trabalhando o imaginário de um professor rural chegando ao governo – “No lápis está a esperança”, foi a palavra de ordem”. Para o analista que acompanha de longe, fica a pergunta sobre como foi aproveitada esta energia da mobilização popular.  

É fato que a radiografia feita pelo avançado programa do Peru Libre identificava um país marcado pelos Tratados de Livre Comércio (TLCs), pela exploração das empresas mineradoras transnacionais, que chegam a ficar com 80% dos seus lucros, num cenário parecido com a Bolívia antes da chegada de Evo ao governo da Bolívia, em 2006. O Peru atravessou décadas amargando o programa neoliberal, sem contraposição, alinhado aos EUA e ao bloco de países contrários à Venezuela no continente. No período de pandemia, foi o país latino-americano com a maior relação entre população e número de mortes por Covid-19.

Num cenário de desigualdade profunda, 21,8% das crianças e adolescentes são obrigados a trabalhar. Não há, além disso, no país um patamar de leis trabalhistas consistente. O número de analfabetos é de 2,7 milhões, em uma população de 32,5 milhões de pessoas, sendo que 84% entre as vítimas de analfabetismo são mulheres.

A crise  entre poder executivo e legislativo se expressa no fato de que o congresso deve aprovar a composição ministerial do governo. Analistas e críticos a Castillo afirmam que, diante da intransigência da direita, o governo flexibilizou e perdeu a orientação mínima, retirando quadros da esquerda taxados como “terroristas” e escolhendo nomes da direita, do campo conservador e economistas neoliberais para composição.  

Após duas desaprovações do gabinete ministerial, artigo publicado na revista Opera resume: “A conformação de seu efêmero terceiro gabinete expressou uma corrente política conservadora em relação aos direitos cidadãos, ortodoxa no manejo econômico e contrária às poucas reformas que foram feitas nos governos anteriores no sentido de melhor a educação universitária e o sistema de transporte público, aponta a analista Ariuela Ruiz Caro”.

Recentemente, buscando escorar-se na importância do Brasil no continente, Castillo ainda apelou com sinalizações para um mal cheiroso Jair Bolsonaro.

Dessa forma, o pêndulo entre inevitável pressão das forças conservadoras, mídia empresarial e imperialismo conjuga-se, então, com a crença da esquerda no governo em atingir uma possível estabilidade institucional. O que, em última análise, desarma a possibilidade de resistência contra o golpe, que não detém sua marcha implacável. Quanto mais cede, mais os golpistas querem.

Lá como aqui no Brasil, este debate é central, na relação entre institucionalidade e convocatória às massas.

Cenário mais instável

“A batalha contra Pedro Castillo começou bem antes de sair o resultado da eleição. Quando a direita percebeu que havia chance de o professor quase desconhecido vencer o pleito, começou a denunciar fraude, como se fosse possível a um candidato sem qualquer ligação com as estruturas de poder realizar uma fraude eleitoral”, analisa a jornalista de América Latina, Elaine Tavares.

A conjuntura do governo de Pedro Castillo, o desenlace do governo Boric no Chile, em meio a uma conjuntura de aprofundamento da crise e instabilidade mundial, parecem apontar para um futuro incerto (ou melhor, certo) para a esquerda que não recorrer à organização popular, buscando, ao contrário, apenas a manutenção de uma institucionalidade em meio à terra arrasada.

Olhando na direção contrária, vale pensar a relação entre organização popular, mobilização, investimento em comunicação e formação no interior das Forças Armadas, nos casos de Cuba e Venezuela, que, nessas duras décadas, de fato foram as únicas duas experiências que resistiram aos assédios golpistas.

No caso do Peru, o historiador Jones Manoel, também no Twitter, ainda apontou a bandeira da Constituinte como abandonada por Castillo, uma vez que ficou sinalizada para o final do seu governo, se é que chegará até lá, em 2026. Surgida das ruas e gritante diante de um congresso antipopular, a exemplo de outros países latino-americanos, seria talvez a forma de romper o cerco para que Castillo tivesse margem de manobra à esquerda.

A instabilidade política, social, institucional não é recente na América Latina. Organizações populares já apontavam uma crise de representação e nas instituições se levamos em conta uma curva maior no tempo, do final da década de 90 para cá, quando movimentos de massa também derrubaram presidentes de forma seguida no Equador, na Argentina, na Bolívia, na Guatemala e Haiti, devido à aplicação do modelo neoliberal.

O problema é que agora a governabilidade torna-se ainda mais difícil em um cenário de crise mundial, guerra na Europa e perspectivas ruins para a economia latino-americana, como mostram os dados da Cepal.

 

 

Edição: Ana Carolina Caldas