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Crônica: Elon Musk de um lado. A gestão popular de dona Néia, Valéria e Laudy de outro

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não é – e nunca será -, o trabalho concreto que está em crise. Os trabalhadores são os produtores do valor na sociedade, ao mesmo tempo são apartados daquilo que produzem - Pedro Carrano
O que segue, portanto, em crise, é o capital. O atual modelo do capitalismo não se sustenta

Ficamos sempre impactados com notícias sobre números, cifras, boladas e valores de trilionários como Elon Musk, o comprador do Twitter por 44 milhões de dólares, dono de inimagináveis 282 bilhões de dólares.

Ou quando nos deparamos com denúncias como a do vereador Renato Freitas, apontando que Daniel Pimentel Slaviero (neto do antigo dono do SBT no Paraná, Paulo Pimentel), e presidente da Companhia Paranaense de Energia (Copel), mesmo com o salário de 67 mil reais, ainda assim recebeu um “bônus”, acho que o nome é esse, de R$ 427 mil como presidente da empresa pública de energia. Os tantos exemplos como esses acima nos chocam ainda mais pelo fato de acontecerem em meio a uma pandemia que impactou gravemente a população mais pobre.

Confesso que esses números de gestores elitistas e empresários bilionários acabam imediatamente me trazendo para olhar a realidade ao meu redor, me fazendo pensar nas pessoas com quem convivo nos movimentos populares, nas áreas de ocupação e nos trabalhos comunitários onde atuo, em Curitiba. Sim, caro leitor e leitora, pode parecer um método perigoso, e de fato é, esse de aproximar-se da sua realidade imediata e local para compreender o todo, embora pode ser também um bom ponto de partida para um raciocínio.

Vejam, acontece que eu acabo pensando no seu Lino construindo e reformando a associação de moradores da vila Formosa para receber a padaria comunitária, a partir do que entra no caixa de nossa campanha. Já nas vilas Maria e Uberlândia, com míseros R$ 250 semanais, que não são nem centavos pra gente como Musk e Slaviero, mesmo assim conseguimos fazer uma cozinha comunitária que alcança quase 300 trabalhadores.

A cozinha é coordenada por dona Néia, dona Irma, Rose Baiana e tantas mulheres com histórico de vida e trabalho e experiência em cozinhas industriais. Dona Irma, moradora da área Ferrovila, costuma nos dizer o seu mote preferido: “Está em depressão? Vem para a associação”, e todos nos doamos ao máximo nesse trabalho voluntário, enxugando, improvisando, extraindo o máximo com o mínimo.

Já Valéria, no Atelier de costura Linha da Esperança, da ocupação Nova Guaporé 2, em meio a tantos corres, e o cuidado de quatro filhos pequenos, ainda arruma tempo para produzir, no quase silêncio da madrugada, cachecóis, panos de prato e artefatos brilhantes, na cor e na forma. Silvia, carrinheira, produz artefatos coloridos a partir do lixo, Leudineia organiza a gestão de produção em um barracão de carrinheiros, Maria Clarice produz sabão, dona Francisca inúmeras ervas e remédios para a comunidade.

É quase chocante como experiências aparentemente tão simples na comunidade podem dizer algo para o olhar mais atento: não é – e nunca será -, o trabalho concreto que está em crise. Os trabalhadores são os produtores do valor na sociedade, ao mesmo tempo são apartados daquilo que produzem. E, nas periferias, mesmo com pouquíssimos recursos e grande criatividade, desenvolvem, com arte e capacidade de improviso, o que for preciso para a sua sobrevivência e para ganhar o seu pão no dia a dia.

A vida de trabalhadores brasileiros é marcada pelo desemprego, pela rotatividade alta do trabalho no país, pelas poucas garantias, mesmo assim suas atividades seguem úteis e produzem coisas úteis – mesmo sem crédito, financiamento, políticas públicas e estrutura para isso. Mesmo que um rápido tour pela cidade industrial de Curitiba revele tantas unidades e barracões abandonados, pouco investimento, empresas e empresários que faliram e os trabalhadores não puderam seguir gerenciando a produção.

Por outro lado, em meio à crise atual, é inevitável pensar em como os principais bancos seguem lucrando. E, no caso da produção, temos o exemplo de duas das maiores empresas nacionais, a Petrobras e a Vale, oferecendo robustos dividendos para seus acionistas nas bolsas de valores de Nova Iorque, enquanto temos fome, carência e dentes mordendo ossos de fim de feira. Enquanto falta para nós, para seu Lino, dona Néia, para Laudicéia, sobra para poucos devido à apropriação e concentração do capital.

E, ainda, o racismo e o sentimento antipopular desses mesmos gestores e grandes capitalistas inviabiliza qualquer iniciativa séria de renda, pelo caráter de classe do Estado e dos governantes que o conduzem. Penso na prefeitura de Curitiba e no governo do Paraná que não foram capazes de oferecer um simples programa de internet gratuito nas áreas de ocupação recentes e na periferia – o que teria ajudado tantas pessoas, produtores de tecidos e artefatos, a não sair de casa e poder vender online. Faltam recursos? Voltamos à pergunta inicial: Para quem? e para quê?

O prefeito de Curitiba, Rafael Greca, inclusive tentou inviabilizar os programas de doação de marmitas feitos por movimentos populares e sindicatos no centro de Curitiba. Por sua vez, em 2020, após ser acusado de ter participado do preparativo golpista que destituiu com violência o governo de Evo Morales, na Bolívia, Elon Musk simplesmente escreveu "vamos dar golpe em quem quisermos", mostrando seu interesse nas reservas bolivianas de lítio. Não à toa, derrubou um presidente legítimo e indígena no país vizinho.

O que segue, portanto, em crise, é o capital. O atual modelo do capitalismo não se sustenta, é um cadáver em putrefação, mas que permanece e se sustenta com seu cheiro no ar, com sua abstração de valores, seu fantasma da exploração, sempre disfarçado e apresentado em soldos de miséria, e seu mau uso do corpo, braços e mentes de trabalhadores, ao equivaler trabalhos tão concretos e particulares em um mercado tão distante e inacessível a estes mesmo trabalhadores.

O capital é uma abstração. Um ente. Um cassino. Cifras e valores que não se conectam com a realidade das maiorias, de nossas gentes, a partir da exploração de seus trabalhos e vidas.

Os trabalhos de seu Lino, de dona Néia, de Ivan dos Correios, de Valeria do nosso Atelier Linha da Esperança, um dia devem estar no poder, que permita uma nova organização da produção, o que significará que os seus trabalhos e produtos devem ter mais valor mais que as cifras de Musks e Slavieros. Trata-se da capacidade de retomarmos nossos corpos, mentes e o produto que provêm deles.

Dando risada hoje à tarde, após um dia de trabalho na cozinha comunitária, sob um sol de final de tarde, de alguma forma nós não esquecemos de que esse mundo – a produção, o trabalho, os alimentos, pertence aos trabalhadores. O resto será deletado para a lata de lixo.

Edição: Frédi Vasconcelos