Coluna

As quatro linhas do Rubicão

Imagem de perfil do Colunistaesd
Esta suposta liberdade de expressão contra a democracia está, definitivamente, fora das quatro linhas da Constituição, e não é liberdade, antes arbítrio e violência - Divulgação / ABJD
Não existe liberdade de expressão contra a democracia e em defesa da ditadura

Por José Carlos Garcia*

Continua após publicidade

Nos últimos anos, muito se tem falado nos riscos e abalos à democracia e às instituições. Comenta-se, às abertas, sobre a possibilidade ou não de um golpe após as eleições. Setores autoritários, civis e militares, pressionam partidos e a Justiça Eleitoral, em regra com base em críticas infundadas sobre pretensas falhas no sistema eletrônico de votação brasileiro, reconhecidamente um dos melhores, mais eficientes e mais seguros do mundo. Lembremos que na noite do mesmo dia da eleição já sabemos seu resultado, enquanto que, nos EUA, por exemplo, a totalização dos votos leva semanas, até meses. E nunca, jamais houve qualquer indício, por mais frágil que fosse, de que o resultado das urnas no Brasil não correspondesse à vontade dos eleitores, e nunca houve uma contestação formal ao resultado das eleições.

Quando se fala nas ameaças à democracia, muitas metáforas são utilizadas. As duas mais recorrentes são a de que os atores políticos devem se manter “nas quatro linhas da Constituição” e que o atual ocupante do Planalto, ao ameaçar as instituições, estaria “atravessando o Rubicão”. Estas duas imagens, ainda que muito batidas, podem nos permitir refletir sobre a situação atual do país. Por isso mesmo, vale recuperar um pouco de seu sentido original.

O Rubicão é um pequeno rio do nordeste da Itália que, na Antiguidade, separava a Gália (hoje, França) do território da cidade de Roma (atualmente, boa parte da Itália). A fim de evitar instabilidades políticas decorrentes da movimentação de tropas no núcleo do Império, o Senado Romano aprovara uma lei que proibia aos generais em regresso de campanhas militares ao norte da Cidade Eterna cruzarem o rio com suas legiões. A famosa “travessia do Rubicão” que deu origem à expressão hoje famosa ocorreu em 49 a.C., quando Júlio César, infringindo a lei romana, entrou no território da cidade com seus exércitos, em perseguição a Pompeu. Desde então, “cruzar o Rubicão” significa tomar uma decisão arriscada e sem retorno possível: após a travessia, como disse César, a sorte estava lançada (alea jacta est), e já não era possível recuar. A expressão vem sendo utilizada largamente neste sentido de decisão impassível de desistência, como fez Machado de Assis em Helena, a propósito do pedido de casamento que Estácio faz a Eugênia: “Transposto o Rubicon, não havia mais que caminhar direito à cidade eterna do matrimônio”. Mais uma vez o Bruxo do Cosme Velho demonstrava sua maravilhosa verve irônica.

Júlio Cesar, ao invadir Roma com suas tropas, não apenas saiu decididamente das “quatro linhas” da Lei de Roma, como ainda provocou uma guerra civil e assumiu poderes ditatoriais absolutos na República Romana. As também famosas “quatro linhas” parecem ser uma metáfora de cunho esportivo, uma referência às quatro linhas demarcatórias do campo de futebol, ou de qualquer outro esporte, único lugar onde o jogo pode acontecer de forma válida. Jogar fora das quatro linhas, especialmente da Constituição, significa fazer jogo ilícito, ilegal, inaceitável, e que não pode produzir resultados válidos.

As duas metáforas são importantes porque ambas fazem uma tradução geográfica do jogo político-jurídico da democracia. Elas o “desenham”, por assim dizer. Indicam, cada uma à sua maneira, que o jogo democrático só é válido quando segue as regras previamente definidas da política e da Constituição. Se democracia é o conflito estruturado e organizado, e este conflito é essencial para a preservação das liberdades – já o dizia Maquiavel, em seus célebres Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio – este conflito, todavia, deve estar sempre no campo simbólico e partir da assunção, por parte de todos os participantes, das regras básicas do convívio: as liberdades de expressão e manifestação e crítica devem dirigir-se ao fortalecimento do espaço de liberdade, não ao seu enfraquecimento; devem robustecer as instituições e permitir que elas decidam tomando em conta os interesses da maior parte de população, e não fragilizá-las para que atendam a interesses meramente particulares, muitas vezes escusos.

É por isso que, como já disse neste espaço há pouco tempo, não existe liberdade de expressão contra a democracia e em defesa da ditadura, pois que esta seria a própria negação da liberdade de expressão. O fundamento válido da liberdade de expressão, aquela que se encontra “dentro das quatro linhas da Constituição”, é que todos possam manifestar-se igualmente, e não que uns possam, sob o argumento da liberdade, impedir outros, aos berros, de se manifestarem. Esta suposta liberdade de expressão contra a democracia está, definitivamente, fora das quatro linhas da Constituição, e não é liberdade, antes arbítrio e violência.

Assim postas as coisas, fica mais claro visualizar quem está saindo das quatro linhas para tumultuar as eleições e quem joga dentro do campo. Seguramente não sai das quatro linhas a Justiça Eleitoral, que tem a competência constitucional exclusiva de organizar as eleições. Já outros órgãos muito importantes do país, como as Forças Armadas, não têm qualquer atribuição neste sentido, e sua opinião sobre as eleições é não apenas absolutamente irrelevante, como, de fato, inadequada em uma democracia: as Forças Armadas são subordinadas ao Poder Civil constitucional, e não devem opinar no que não é de sua alçada; baseadas nos princípios de hierarquia e disciplina, devem obedecer ao Poder Civil, fazendo exclusivamente o que a Constituição lhes atribui e comanda.

O Presidente da República não tem autoridade ou poder de incidir sobre as eleições, muito menos de constranger os demais poderes, o que pode mesmo caracterizar crime de responsabilidade. Nas democracias, o soberano é o povo, e seus representantes temporários curvam-se à autoridade da Constituição e respeitam as atribuições constitucionais dos demais poderes, autônomos e independentes entre si. Isto é estar dentro das quatro linhas do campo.

O recente discurso do Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, Presidente do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, defendendo a plena regularidade das eleições foi, por isso mesmo, exemplar, tanto em forma quanto em conteúdo. Explicita as atribuições da Justiça Eleitoral e adverte àqueles que se engraçam fora das quatro linhas de que não é lá que o jogo ocorre. Segundo ele, "a Justiça Eleitoral está aberta a ouvir, mas jamais estará aberta a se dobrar a quem quer que seja”, a qualquer um que queira “tomar as rédeas do processo eleitoral”, e que “nada nem ninguém vai interferir na Justiça Eleitoral”.

Neste momento de bravatas, ameaças e agressões às instituições democráticas, banalizadas imbecilmente sob a pretensa máscara de uma suposta “liberdade de expressão”, é preciso recuperarmos aquilo que o jurista alemão Konrad Hesse chamava de “vontade para a Constituição” – aquele compromisso que as instituições, a sociedade, os cidadãos têm de efetivamente realizar aquilo que a Constituição estabelece, dispõe, obriga. “Quanto mais intensa é a ‘vontade para a Constituição’, tanto mais longe ela é capaz de ampliar os limites de possibilidade de realização da Constituição”, dizia ele (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998, p. 49).

Defender a Constituição e seu regime de liberdades, bem como o regular e tranquilo funcionamento dos poderes constituídos, sem ameaças ou agressões, é o dever dos democratas de todos os matizes neste momento – aí incluídos todos os juízes e juízas que, ao tomarem posse, juram solenemente cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis da República. É, mais do que nunca, indispensável manifestarmos uma profunda vontade de Constituição, de assegurar sua força normativa e sua capacidade de conter os arroubos autoritários e ditatoriais daqueles que, saindo das quatro linhas, geram tumulto e intranquilidade, fazendo jogo à margem do campo e, por isso mesmo, ilegal e inválido.

Não se nega que a força bruta possa pretender corromper esse processo – a vontade de Constituição não é ingenuidade ou abstração metafísica, antes compromisso institucional e político com os fundamentos das liberdades e direitos que a Constituição consagra; ou seja, é uma luta em defesa da Constituição. Todavia, também aí devemos recuperar a origem histórica das expressões que marcaram este artigo. Temerariamente, César cruzou o Rubicão, destituiu Pompeu e tornou-se ditador. Parecia ser o auge de seu poder e de seu gênio. Cinco anos depois foi assassinado por Marcus Junius Brutus aos pés da estátua de Pompeu, em pleno Senado. O jogo político fora das linhas do campo nunca é válido, e somente a Constituição pode trazer segurança e estabilidade às instituições democráticas.

Viva a Constituição brasileira.

 

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes