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“Não somos lixo para sermos despejados”, diz moradora da Ocupação Vila Fazendinha, em BH

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“Lutamos por um lar para podermos envelhecer com dignidade. Só isso que peço. Eu não quero que essas crianças passem pelo que eu passei nas ruas de Belo Horizonte” - Foto: Divulgação/MOB
Na Vila Fazendinha, estamos tendo oportunidade de melhorar nossa vida e de construir nossa história,

“Em nome de Jesus, tratem-nos como um parente de vocês”. Esse pedido foi feito em forma de clamor por Cristina Aparecida Siriaco, 38 anos, mãe de três filhos, nascida nas ruas de Belo Horizonte, uma sobrevivente que insiste na luta por dignidade e, por isso, não aceita ser despejada pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e pelo Tribunal de Justiça do estado. O pedido para ser tratada como parente foi feito às 9:45, do dia 2 de junho de 2022, no início da reunião da mesa de negociação do governo estadual com a Ocupação Vila Fazendinha, localizada no Calafate, em Belo Horizonte.

Mais de 20 famílias que não suportam mais as agruras que é sobreviver nas ruas – ou a pesadíssima cruz do aluguel, ou a humilhação que é sobreviver de favor nas costas de parentes – ocuparam uma área que estava totalmente abandonada, sem cumprir sua função social, a Vila Fazendinha. Totalmente ocioso, o local era usado para descarte de lixo ou por alguns carroceiros para deixar os cavalos pastarem.

O governador Romeu Zema conseguiu no Tribunal de Justiça de Minas Gerais uma decisão judicial para despejar as famílias, a chamada reintegração de posse. Como reintegrar uma posse se não havia ninguém do governo antes na posse? Injustamente, os tribunais geralmente só observam se quem reivindica um imóvel tem documentos, mas não verificam se quem está reivindicando tinha mesmo a posse ou não.

Para acessar o endereço da reunião virtual, as famílias da Ocupação Vila Fazendinha foram acolhidas na Ocupação Invisível, no Centro de Belo Horizonte. No início da reunião, a palavra foi passada às famílias da Via Fazendinha. Uma cascata de palavras de fogo, que cortam mais do que navalha, foram ditas para as autoridades que compõem a mesa de negociação.

Transcrevo abaixo o que disse Cristina, com a voz embargada, muito emocionada, mas com a cabeça erguida e o olhar fixo.

“Estou aqui para representar não só minha família, mas todo o meu povo. A gente veio de uma história de família muito difícil. Meu pai e minha mãe me conceberam nas ruas de Belo Horizonte. Nasci na rua. Fui criada na rua. Sou uma sobrevivente das ruas. Conheço todo o Centro como a palma da minha mão. Nosso lar era a marquise. O primeiro teto que eu vi foi uma caixa de papelão de geladeira. Minha mãe nos deixou dentro daquela caixa de papelão e foi procurar algo para a gente comer. Alguém passou e tocou fogo na caixa com a gente dentro. Tive que sair correndo para não morrer queimada.

Em nome de Jesus, eu peço a vocês, autoridades, para não deixarem acontecer com nossos filhos o que aconteceu comigo e com minha prima. Ponham a mão na consciência, olhem para nós, ponham o coração de vocês em nós e nos tratem como um parente de vocês. Sei que os filhos de vocês, a linhagem de vocês, nunca vão passar pelo que nós passamos, mas eu estou vindo de uma linhagem que preciso pedir isso para vocês.

Em nome de Jesus, não nos despejem lá da Ocupação Vila Fazendinha, pois se isso acontecer, meu neto será jogado na rua. Nossos pais não tiveram condições de dar um lugar digno para a gente viver. A Praça Raul Soares, aqui no Centro de Belo Horizonte, conheço como a palma da minha mão, pois era o quintal de onde a gente vivia e brincava.

Quando nós ocupamos a Vila Fazendinha, lá era tudo abandonado, era local de descarte de lixo, totalmente abandonado pelo governo de Minas, que hoje se diz dono daquele lugar. Eu tenho 38 anos de vida e de luta por dignidade. Agora voltei a estudar, pois tem escola perto da Vila Fazendinha. Eu trabalho como diarista para famílias do bairro Calafate. Na Vila Fazendinha, estamos tendo oportunidade de melhorar nossa vida e de construir nossa história, nossos sonhos.

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Minha mãe morreu por feminicídio, assassinada debaixo do viaduto, onde a gente morava. Eu com 9 anos de idade, apaguei o fogo que um rapaz tinha jogado na minha mãe, mas não consegui evitar a morte dela. Eu tenho três irmãos em situação de rua, que moram debaixo dos viadutos. Se eu continuar construindo minha casinha ali na Ocupação Vila Fazendinha, eu poderei ajudar meus três irmãos e tirá-los da rua.

A gente não quer aluguel social, pois, após alguns meses, o governo para de pagar e nos joga na rua novamente. Eu não tenho condições de pagar aluguel, pois perdi meu emprego na pandemia. Se vocês do governo de Minas Gerais nos despejarem de lá, para onde iremos e que história eu vou contar para meu neto? Como eu vou ajudar meus irmãos, que continuam em situação de rua, se formos despejadas? Não somos lixo para sermos despejados. Há 38 anos, estou lutando por dignidade.

Lutamos por um lar para podermos envelhecer com dignidade. Só isso que peço. Eu não quero que essas crianças passem pelo que eu passei nas ruas de Belo Horizonte. Vivendo ali na Vila Fazendinha, mexendo na horta comunitária, melhorei minha saúde e o meu psicológico. Na Ocupação Vila Fazendinha, não tem usuário de droga. Lá as pessoas trabalham, fazem faxina, lá estão nossa história e nossos sonhos.

Nossas crianças estão nas creches próximas. As igrejas ajudam a gente. Na Ocupação Vila Fazendinha, somos 16 famílias, que forma uma só grande família. A gente só quer dignidade, que é um direito de todos. Aquele lugar lá só tinha lixo. Agora que estamos cuidando do espaço e dando função social para aquela terra, que estava ociosa, mas o governo Zema quer tirar a gente de lá. Isso é muita violência conosco. O mundo é cheio de terra. Por que a gente tem que sofrer tanto?

Nós já criamos raízes na Vila Fazendinha. Já conhecemos muita gente ao redor da nossa Ocupação, já fizemos muitas amizades com a vizinhança. Lá, se a gente fizer uma festinha de aniversário, podemos chamar nossos amigos e amigas. Como eu cresci sobrevivendo ‘daqui e dali’, eu não tinha amigos. Ali, na Ocupação, nossas crianças podem brincar, criar raízes e sonhar. Nós amamos aquele local da nossa Ocupação, pois nos traz segurança, paz e vida. É um lugar gostoso de morar. Eu já sofri abuso por morar em lugar descampado, ermo, longe de vizinhança. Nós e nossas crianças precisamos daquele local humilde. Em nome de Jesus, repito e peço a vocês: não nos despejem”.

Com essa sabedoria, altivez e humanismo revelado por Cristina, feminino de Cristo, uma libertadora e salvadora da humanidade, ela é digna de receber o título de Doutora Honoris causa da “Universidade do Povo da Rua”. Diante do clamor de Cristina, os representantes do governo de Minas Gerais e da Prefeitura de Belo Horizonte ofereceram apenas migalhas e disseram que não têm outra moradia igual ou melhor para oferecer para Cristina e para as 16 famílias da Ocupação Vila Fazendinha.

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Entretanto, o governador Zema colocou à venda a maioria dos 5 mil terrenos da Companhia de Habitação do Governo de Minas Gerais (Cohab) no estado de Minas Gerais, que padece um déficit habitacional acima de 700 mil moradias. “A ordem é vender o que for possível, vender do Estado, privatizar ao máximo”, repetem os burocratas do governo vassalo das grandes indústrias, do agronegócio e das mineradoras.

A terra aprisionada em latifúndios para o agronegócio e a falta de reforma urbana violentam a dignidade de milhões de pessoas. A Prefeitura de Belo Horizonte informou, na última semana, que existem na capital mineira 17 mil lotes vagos e mais de 80 prédios ou casarões abandonados no Centro da cidade, dentro do perímetro da Avenida do Contorno. Nos bairros nobres, há milhares de casas ou apartamentos luxuosos com poucas pessoas, enquanto nas periferias o povo negro sobrevive apertado, quase amontoado. Eis sinais evidentes de que a escravidão não acabou, pois, relações sociais escravocratas se reproduzem cotidianamente. Povo sem-terra e sem-teto, uni-vos em lutas coletivas por terra, moradia, pão e liberdade.

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas, e colunista do Brasil de Fato MG.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Mãe palavras de fogo: "Zema, não nos despeje! Nasci na rua. Minha mãe foi morta nas ruas de BH"

2 - Governo Zema despejando pobres no Centro de BH. "Não somos lixo!" Ocupação Vila Fazendinha. Vídeo 1

3 - Em vigília de natal, mães clamam para não serem despejadas da Ocupação Vila Fazendinha em BH.

4 - Ameaça de despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte. Alto lá!

5 - Crianças e mães clamam para não ser despejadas na Ocupação Vila Fazendinha, Belo Horizonte.

6 - "O governo de Minas e o TJMG vão despejar a Ocupação Vila Fazendinha em BH e nos jogar na rua?"

7 - Injusto despejar 30 famílias da Ocupação Vila Fazendinha em BH. Jogá-las na rua? 

Edição: Larissa Costa