Paraíba

Coluna

Quem policia a polícia que mata a população negra?

Ação policial e assassinato de Genivaldo de Jesus Santos em Sergipe. - Reprodução/Redes Sociais.
Dos 6.416 brasileiros mortos por intervenção policial em 2020, 78,9% eram negros (as)

Por Danilo Santos da Silva*

 

Durante o período da escravidão, a população negra proporcionou um grande paradoxo na sociedade brasileira. Do ponto de vista da legislação civil, a pessoa escravizada era vista como “coisa” e do ponto de vista da legislação penal, era vista como “gente”. Dessa forma, quando era para responder por crimes, a pessoa escravizada era considerada pessoa, só não era considerada pessoa quando se tratava da aquisição de direitos. Vários autores já se debruçaram sobre esse paradoxo racial.

A polícia foi criada para controlar a população escravizada e diante de tudo que vem acontecendo, fica nítido que ela nunca se apartou de seu passado inglório. Tal informação é importante, nos ajuda a compreender a sua atitude de repressão e violência para com a população negra nos tempos atuais. Esse braço do Estado continua proporcionando atrocidades contra a dignidade humana das pessoas negras, como se ainda estivesse no período da escravidão.

A polícia é um elemento fundamental, em um país, onde o Estado quando não mata, produz as condições mortíferas determinando quem, quando e onde vai morrer, por ação ou por omissão. Faz parte de uma sociedade que prevalece o senso comum racista, institucionalizando a inversão da máxima do direito: “a população negra é culpada até que se prove o contrário”; que tem facilidade de se “comover” com os casos de violência racial nos Estados Unidos, mas, tem grande dificuldade de reconhecer a violência racial no âmbito brasileiro, tão grave e descarada como na sociedade norte-americana.  

Uma sociedade onde grande parte da mídia nacional é sensacionalista, colaborando e beneficiando-se da continuidade dessa repressão e violência policial nos territórios de maioria negra. Basta acompanhar os noticiários diários para comprovar a cor da pele e o lugar dos indivíduos estigmatizados pelos programas policialescos. A outra parte da sociedade, tem dificuldade de reconhecer, e por consequência, de classificar a violência empregada nos morros, favelas, periferias e subúrbios, nos territórios de maioria negra, como manifestação da violência racial que é cometida, quando não, negligenciada pelo Estado brasileiro.

O estudo desenvolvido pela Rede de Observatórios da Segurança, mostrou que a pele negra foi o alvo mais recorrente da polícia no Brasil em 2020. A população negra foi quem mais morreu em ações policiais, independente dos índices demográficos da população negra nas cidades dos Estados brasileiros. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, dos 6.416 brasileiros mortos por intervenção policial em 2020, 78,9% eram negros (as). A taxa de letalidade em operações policiais é 2,8 vezes maior entre negros do que entre brancos.

Mesmo em um contexto de crise sanitária mundial, o racismo estrutural, em sua versão institucional, não possibilita trégua. A polícia continuou enxergando a população negra como inimiga a ser combatida, baseando-se em um imaginário construído a partir do senso comum racista, que é transformado em verdade nas instituições estatais e retorna para a sociedade como norma, servindo de base para justificar a violência nos territórios de maioria negra.

A polícia que tem imensa facilidade para aceitar como prova os reconhecimentos de “suspeitos”, única e exclusivamente por fotografia, é a mesma, que apresenta dificuldades em discernir a diferença entre guarda-chuvas, furadeiras e armas de fogo; a diferença entre um vidro pinho sol e um coquetel molotov. Tais características têm proporcionado prisões injustas, que podem durar vários anos e acima de tudo, tem contribuído para promoção de atos inumanos, chegando a levar à morte de homens e mulheres negras, por razão das ações violentas da polícia, como foi caso da última operação policial na Vila Cruzeiro, que deixou 25 mortos no Rio de Janeiro.

Não podemos esquecer do caso de Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, mulher negra, que foi baleada durante uma troca de tiros entre policiais e traficantes no Morro da Congonha, em Madureira/RJ. Depois foi arrastada por cerca de 250 metros pela viatura da polícia, batendo contra o asfalto conforme o veículo fazia ultrapassagens. Apesar de serem alertados por pedestres e motoristas, os policiais não pararam o carro.

E mais recente, o caso Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, homem negro, que morreu após uma abordagem de policiais rodoviários federais, no município de Umbaúba/SE. Toda a ação violenta foi gravada por pessoas que acampavam a abordagem. Após ser dominado e colocado no porta-malas, o homem morreu sufocado, em uma espécie de “câmara de gás", improvisada em poucos minutos pelos policiais dentro da viatura, e todo mundo presenciar.

É importante analisar como a nota da polícia rodoviária federal minimizou a violência empregada na abordagem policial, destoando das imagens que circulam pela internet, segundo PRF de Sergipe: “[...] em razão da sua agressividade, foram empregados técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção [...]”. Essa nota foi veiculada nas redes sociais e na imprensa nacional. Será que já não temos exemplos suficientes para entender que um joelho no pescoço, não pode ser considerado uma “imobilização de menor potencial ofensivo”? Já foi registrada e noticiada uma morte, em um bairro nobre, a partir da utilização de uma “imobilização de menor potencial ofensivo”?

Será que a experiência das câmaras de gás nazistas da Segunda Guerra Mundial não nos leva a crer, que uma câmara de gás improvisada em uma viatura da polícia não pode ser vista como um “instrumento de menor potencial ofensivo” para conter e dominar uma pessoa?  E para finalizar, mais não menos importante, a PRF de Sergipe escreve: “[...] lamenta o ocorrido e informa que foi aberto procedimento disciplinar para averiguar a conduta dos policiais envolvidos”.  

Realmente é lamentável, que em nenhum momento da nota, aconteça o reconhecimento de que houve no mínimo excesso na abordagem policial. Também é impressionante perceber a existência de uma “venda nos olhos” da PRF de Sergipe, que a leva a desconsiderar as imagens e as testemunhas que presenciaram o acontecido, como se isso tudo não fosse suficiente para comprovar o abuso que levou à morte de uma pessoa negra. A regra é a do Estado policial: abrir procedimento disciplinar para averiguar a conduta dos policiais envolvidos, como se essa conduta violenta já não estivesse mais do que provada.

Essa ação policial confirma e depois, a nota oficial da PRF de Sergipe reafirma, um sistema extrajudiciário que acusa, julga e atribui a sentença à população negra no Brasil.

Então, no final das contas, quem policia a polícia que mata a população negra????

Para saber mais

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Ódio e nojo: estamos à mercê de assassinos respaldados pelo Estado brasileiro. FOLHA/UOL: 2022. (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/silvio-almeida/2022/05/odio-e-nojo.shtml).

BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, Editora Revan, 2003.

Pereira, Larissa Urruth. Quem policia a polícia? Breves considerações sobre a atuação policial no Brasil. Revista Brasileira De Sociologia Do Direito, v.1, n. 2, 2014, p. 83-97. (http://revista.abrasd.com.br/index.php/rbsd/article/view/29).

SILVA, Danilo Santos da. Racismo institucional, política da morte e genocídio da juventude negra.  Coluna: História Pública & Narrativas Afro-Atlânticas, Brasil de Fato Paraíba, 2020. (https://www.brasildefatopb.com.br/2020/09/25/racismo-institucional-politica-da-morte-e-genocidio-da-juventude-negra).

 

* Pesquisador colaborador do NEABI-CCHLA/UFPB; Assessor de Projetos do Fundo Brasil de Direitos Humanos e Ativista do Movimento Negro.

 

Edição: Heloisa de Sousa