Rio Grande do Sul

Coluna

Enquanto pudermos recomeçar nada ficará muito tempo oculto, nas sombras do medo

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"Aparentemente cresce nossa insensibilidade em face às discriminações, à fome, às mortes, à corrupção e aos escândalos apurados" - Arte: Nando Motta
O triste é o sentimento de que tudo isso vai passar, mas nada será como antes

Está perdendo objetividade aquela prática de conversar em grupo sobre os acontecimentos mais relevantes do momento, e só então escolher atitudes compatíveis com um futuro desejado. As avaliações de conjuntura têm sido de pouca utilidade. Laços de confiança, ações táticas, acordos estratégicos pautados pelas possibilidades estabelecidas no contrato social vigente, tudo isso vem se esfumaçando.

A própria racionalidade perde significado nesta sociedade onde o presidente, além de mentir e acobertar crimes, parece se divertir com isso. Como resultado, se normaliza o desrespeito aos valores éticos e morais, são alteradas as normas de convivência e se acumulam trocas de favores que em países mais sérios seriam motivo de revolta.

Não se trata apenas do deboche contido na moldura do “pacote do desespero”, com que agora aliados do presidente tentam viabilizar “compensações” a alguns dos danos causados pelo seu governo. O fato é que os escândalos se sucedem em tal ritmo que as reflexões sobre o ontem acabam perdendo seu sentido operacional. Em outras palavras, vivemos sob tal pressão, na expectativa do próximo e do seguinte absurdo, que esquecemos nossas responsabilidades para com a construção do amanhã.

Dói perceber que a morte de Marielle, os depósitos do Queiroz, os celulares do Adriano da Nóbrega, a fabulosa loja de chocolates e as rachadinhas do Flávio, o dia do fogo, o genocídio indígena, o ecocídio amazônico e o esquartejamento de Bruno e Dom, já são coisas do passado. Segue firme a realidade de distopia nacional que ali se evidenciava e ainda assim nos mantemos alheios ao rumo da história, esperando soluções mágicas e na expectativa do que virá.  

Aparentemente cresce nossa insensibilidade em face às discriminações, à fome, às mortes, à corrupção e aos escândalos apurados. Esquecemos a CPI da Covid, a realidade permeada por assassinatos, massacres, abusos sexuais e violências cotidianas, não apenas no Vale do Javari como em tantos outros territórios sob domínio de atividades criminosas acobertadas pela impunidade.

Por quê? Porque tudo perde valor e sentido quando os modelos nacionais de sucesso, incluem um presidente que é o que este é, que age como este age. Um presidente que, mesmo comprando apoios canalhas para manter suas ameaças à democracia, continua acobertado por instituições que deveriam ser nobres como as Forças Armadas, as presidências da Câmara e Senado federais, a Procuradoria Geral da República, alguns de seus pares e mesmo aqueles estranhíssimos candidatos a representantes de deus, na terra.

Vivemos, enfim, uma época de derrocada das instituições, com naturalização e acobertamento de maracutaias de todos os calibres. Uma época pautada por gestores alheios à modernidade e às tradições humanistas, que não satisfeitos em ameaçar de morte a juventude desta geração, babam de gozo enquanto comprometem o futuro dos que virão. E tudo isso com a luz, as pompas circunstâncias e exibicionismos palacianos.

Desprezando os deveres de sua função, o presidente se pavoneia enxovalhando o cargo e assumindo de vez o papel de bobo da corte, empenhado especialmente em caprichar nos xingamentos e nas mentiras. Como interpretar, por exemplo, seu anúncio de que pretende organizar uma CPI para averiguação das consequências de sua própria política, na Petrobras? 

“Traidores” é como ele se refere aos cupinchas desmascarados, que se acumulam e são descartados vivos ou mortos-vivos, ao longo dos meses de governo. O que pensar do presidente da Caixa Econômica Federal, que passava a mão na bunda de funcionárias para quem sussurrava “estou com vontade de você”? Afinal, seu chefe e amigo não estufava o peito para dizer que o auxílio moradia servia para “comer gente”?

Enquanto isso, a fome avança, a Eletrobras é privatizada, as Unidades de Conservação são encaminhadas ao apagamento, o pacote do veneno é aprovado na Câmara Federal e os escândalos se acumulam.

Mesmo com Lula já superando 52% da preferência nacional, em votos válidos, o senador Filho Zero-Um aposta em nosso medo. Ele “não descarta reação violenta de apoiadores em caso de derrota de Bolsonaro”.

Temos que reconhecer. O medo funciona. E Lula está muito certo quando diz, na linha reta, usando o mote da CPI da Petrobras, que não devemos dar muita bola para isso, pois “o que Bolsonaro quer é confusão”.

Afinal, é isso mesmo.

Vejam o posicionamento presidencial naquele enredo da prisão de seu penúltimo ministro da educação.

Motivos? O fato envolve tráfego de influência e corrupção da grossa. Possível rachadinha articulada com pastores bolsonaristas indicados pelo chefão e desvio inaudito recursos do fundo de apoio à educação.

Consequências? O juiz ameaçado e o ministro solto por habeas corpus emitido por desembargador em ascensão, com base em argumentos apresentados pelo próprio MPF. Tudo muito rápido.

E o ministro, inicialmente abandonado pelo presidente, que candidamente dizia: “que ele responda pelos atos dele, eu peço a Deus que não tenha problema”, ganhou, agora, alguma –talvez perigosa – sobrevida.

Em retorno aos riscos do convívio com os seus, em liberdade, passou a ser defendido com frases memoráveis. Segundo o presidente, aquilo “Não foi corrupção da ‘forma que estamos acostumados a ver’”. Ou, revelando saber das coisas que se passam em seu governo:  “essa história de fazer tráfico de influência, é algo comum”. Enfim, e afinal das contas, para encerrar a conversa, o inominável reconhece que pode ter  “exagerado” ao dizer que por aquele ministro ele botaria a cara no fogo.

Os próximos passos saberemos com o avanço do pedido de CPI do MEC, que dependerá do presidente do Senado, assim como os pedidos de impeachment até aqui inúteis, dependeram do procurador Geral da República, que por inoperância na CPI da Covid também tem sofrido ameaças de pedido de impeachment.

O triste é o sentimento de que tudo isso vai passar, mas nada será como antes.

Perdemos a confiança nas instituições assim como o hábito das análises de conjuntura. Passamos a ampliar os poderes de mitos e demônios inexistentes, simplesmente alardeando que temos medo deles, ainda que eles se saibam fantoches, bonecos de ar.

E os pesadelos estão acabando conosco, porque temos medo de acordar.

Porque temos medo de crescer, de punir os maus exemplos, de nos assumirmos como adultos responsáveis pelo nosso próprio destino.

A mensagem é simples. Está na hora de acordar.

Por amor, porque depende de nós, e porque é possível, vamos vencer no primeiro turno e recomeçar tudo outra vez.

Gonzaguinha vive!

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko