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O golpe e o Golpe: o retorno do “partido do interior”

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Lira tem deixado Bolsonaro solto para destruir o regime democrático brasileiro. - Alan Santos/PR
Temos que continuar na luta por um poder executivo que faça políticas para o Brasil como um todo

Bolsonaro está tentando dar um golpe e acabar com a democracia brasileira. Isso não é novidade para ninguém. Com nossas cabeças modernas, acostumadas ao imaginário das grandes revoluções e dos grandes golpes, de um lado, imaginamos os representantes do povo dizendo “nós, o povo”, tomando palácios e escrevendo novas cartas constitucionais. Do outro lado, pensamos em juntas de militares colocando tanques nas ruas e assumindo o controle do país a partir de algum quartel na capital.

No entanto, os golpes e as revoluções raramente se processam assim, a partir de um grande momento de triunfo dos golpistas ou dos revolucionários. O grande momento talvez seja quando percebemos que já não há mais retorno, que a partir dali viveremos em outro regime político, para o bem ou para o mal.

Na verdade, golpes e revoluções se processam ao longo de anos, às vezes décadas. A ciência política de inclinação liberal está descobrindo agora que as democracias morrem devagar, corroídas por dentro. Observadores mais atentos, no entanto, sabem há tempos que, mesmo os golpes “bruscos”, não começam do nada.

A quartelada dos militares brasileiros em primeiro de abril de 1964 tem suas raízes nas turbulências do fim do segundo governo Vargas, dez anos antes. Da mesma forma, a criação da Assembleia Nacional Constituinte francesa em 1789 tem suas raízes nas disputas entre a coroa e a nobreza no parlement de Paris na década de 1770.

Os golpes em curso no país

No Brasil de hoje, há um golpe de mais longo prazo que circunda o Golpe de Bolsonaro – vamos usar o G maiúsculo para o grande momento que Bolsonaro almeja e o minúsculo para esse processo mais longo – que é muito mais preocupante do que os delírios do capitão e alguns militares abestados sobre as urnas eletrônicas.

Desde o governo da presidenta Dilma, os diversos grupos, que compõem o que o cientista político André Singer chamou de o “partido do interior”, decidiram que não mais precisariam negociar e conciliar com o “partido popular” (cuja força hegemônica é o PT) ou com o “partido da classe média” (à época, o PSDB). A quebra da governabilidade de Dilma e o impeachment foram o início do longo golpe do “partido do interior” para instalar um novo sistema de governo no Brasil.

Desde então, o golpe com g minúsculo avança a cada dia, destruindo tudo o que representa o Brasil como nação. Temos que lembrar que o aspecto essencial do “partido do interior” não é mais ser do “interior”, mas ser uma aglomeração de interesses dispersos, seja no território, seja na economia. Não apenas caciques políticos de cidades pequenas, mas militares mamateiros, barões do poder judiciário, policiais milicianos, desmatadores da Amazônia, pastores endinheirados, piramideiros do mercado financeiro e barões do agronegócio.

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Tudo que unifica é ruim para o “partido do interior”. Seja a sensação de unidade e pacto social criada pela redução da desigualdade econômica ou a unificação do orçamento nas mãos de um executivo forte. A reforma trabalhista, o orçamento secreto e a destruição das estatais por privatizações toscas têm uma coisa em comum: destroem o Brasil-nação e distribuem nossas riquezas para pequenos poderosos.

Existência na divisão

Por que termos uma estatal forte como a Petrobrás, que liderava a tentativa de reindustrializar o Brasil, se podemos ter uma série de pequenos monopólios locais de gasodutos e refinarias? Para o “partido do interior” e seu atual líder, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, o que interessa é fragmentar para criar hierarquias.

Interessa também desmontar todas as hierarquias que podem competir com a do “partido do interior”. Daí parte o recente ataque ao ICMS, principal fonte de arrecadação dos estados, e a tentativa de retirar o controle das PMs das mãos dos governadores. Assim, cada um dos interesses domina seu feudo, mas esse domínio está sujeito ao comando de Lira.

O grande problema do “partido do interior” é sua falta de legitimidade perante o povo, entendido como totalidade. Obras, tratores e outras benesses entregues pelos esquemas da Codevasf garantem a legitimidade das lideranças locais em seus currais eleitorais, mas o “partido do interior” não consegue se apresentar como legítimo representante do todo, da nação, do povo, do Brasil. O problema do “partido do interior” é justamente que ele existe na divisão. Não pode, por definição, ser representante do todo.

É por isso que o semipresidencialismo se apresenta como a culminação do golpe de longo prazo. Arthur Lira deixaria algum espaço para os brasileiros brincarem de povo de quatro em quatro anos, enquanto o “partido do interior” controla o que interessa: a máquina e o cofre do Estado brasileiro.

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A cada eleição, escolheríamos o fantoche que mais gostamos – do povo, intelectual anticorrupção, religioso, sambista ou jogador de futebol, não interessa muito – para ficar lá no Planalto acenando para nós. Enquanto isso, os caciques políticos e pequenas potestades distribuem os recursos do Estado brasileiro para suas bases locais.

Dentro do golpe de longo prazo, Bolsonaro e seu Golpe cumprem uma função dupla: em um primeiro momento, foi essencial para dar ao “partido do interior” a cara de representação do todo que lhe faltava. O governo de Michel Temer demostrou que, sem um movimento político de massas, o “partido do interior” não teria condições de implementar seus planos sozinho, principalmente enfrentando o ex-presidente Lula, maior representante dessa totalidade que o Brasil teve em períodos recentes. Para o “partido do interior, Bolsonaro” foi a possibilidade de apresentar uma liderança política de massas que poderia dar alguma tintura de legitimidade ao processo de destruição em curso.

O que vimos no governo Bolsonaro foi um embate entre o centrão – a aglomeração parlamentar que encabeça o “partido do interior” nos dias atuais – e Bolsonaro. O centrão nunca quis “moderar” Bolsonaro. Os dois lados estão disputando o futuro golpista do país: Bolsonaro quer um Golpe em que ele seja a nova liderança nacional com poderes absolutos, algo que ele tem se mostrado bastante incapaz de executar. Já o centrão quer colocar Bolsonaro de volta no seu lugar, como líder de uma facção dentre as várias que compõem o aglomerado do “partido do interior”.

O Golpe de G maiúsculo que Bolsonaro tenta aplicar também tem função dupla. Para Bolsonaro, é a chance de instalar seu regime. Para o “partido do interior”, há duas possibilidades, como já argumentei em outro texto. Se o Golpe de Bolsonaro der certo, os serviços do centrão continuarão necessários para um ditador fraco; se der errado, o “partido do interior” pode vender uma possibilidade de paz após o caos bolsonarista. Arthur Lira venderá o semipresidencialismo como estabilidade e conciliação.

O golpe e o Golpe andam juntos

Lira tem deixado Bolsonaro solto para destruir o regime democrático brasileiro, crendo que o Golpe de G maiúsculo será apenas mais uma etapa do golpe de longo-prazo que o “partido do interior” está aplicando desde 2015. Bolsonaro crê no exato oposto. O golpe em curso do “partido do interior” vai culminar no seu Golpe com as polícias e militares.

Independentemente do rumo que os golpistas tomarem, nós, que não somos golpistas de G maiúsculo ou minúsculo, temos que continuar nossa luta por um poder executivo forte que faça políticas para o Brasil como um todo. Temos que retomar as verdadeiras políticas nacionais contra a fragmentação do poder em curso, políticas para uma economia integrada e desenvolvida e para uma população unida na igualdade econômica e social.

Pedro Faria é economista e historiador. É pesquisador do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG e membro do Instituto Economias e Planejamento.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa