Violência

Entenda o conflito que eclodiu no Sudão

Confrontos entre forças do governo e paramilitares deixam centenas de mortos e expõem racha entre dois líderes militares

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Apoiador do general Abdel Fatah al-Burhanno Sudão - AFP

A violência que tomou conta do Sudão já deixou ao menos 413 mortos e 3.551 feridos,  afirmou a Organização Mundial da Saúde (OMS) nesta sexta-feira (21/04).  Os confrontos entre paramilitares e forças do governo eclodiram nas ruas da capital, Cartum, em 16 de abril e se estenderam por outras regiões do país africano.

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Os combates começaram após meses de tensões entre dois líderes militares rivais. As Forças Armadas do Sudão, sob o comando do general Abdel Fatah al-Burhan, e unidades paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), chefiadas pelo vice-presidente do Conselho Soberano, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, trocaram acusações de provocar o conflito.

"Tanto instalações militares quanto as da FAR ficam no meio da cidade. Então, essa luta pelo poder está sendo travada aqui também, em bairros residenciais, onde as pessoas normalmente iriam fazer compras ou para a escola. Em todos os lugares, se ouvem as batalhas, e durante o dia inteiro", conta a residente da capital sudanesa e diretora do escritório da Fundação Friedrich-Ebert em Cartum, Christine Roehrs.

Confira os principais pontos para entender o conflito:

Quem é Burhan?

O general Abdel Fatah al-Burhan é de fato o líder do país africano. Ele se tornou um nome conhecido em 2019, depois que o Exército derrubou o autocrata de longa data Omar al-Bashir, após meses de protestos em massa.

Antigo aliado de Bashir e comandante militar que liderou campanhas criminosas no conflito de Darfur (2003-2008), Burhan mudou de lado com a queda do autocrata em 2019. Ele presidiu o Conselho Militar de Transição, órgão criado para supervisionar a transição do Sudão para o regime democrático, e se tornou presidente interino do país.

No entanto, com o prazo para entregar o poder a governantes civis se aproximando, em outubro de 2021, Burhan deu um golpe, derrubando o primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok e acabando com a transição democrática.

Desde então, Burhan reforçou seu controle sobre o país, apesar de constantes protestos e de um acordo de dezembro de 2022 para abrir caminho para um governo de transição civil.

Quem é Hemedti?

Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, desfruta de forte posição desde que Bashir assumiu o poder. Vindo de uma família de pastores de camelos distante da capital, ele subiu na hierarquia para se tornar líder da notória milícia Yanyawid, que deu origem às FAR e é acusada de cometer crimes contra a humanidade durante o conflito de Darfur.

O conflito em Darfur eclodiu quando rebeldes de minorias étnicas locais lançaram uma insurgência em 2003, alegando opressão do governo de Cartum, dominado por árabes. Estima-se que até 300 mil pessoas tenham sido mortas e 2,7 milhões expulsas de suas casas em Darfur ao longo dos anos, segundo a ONU.

A milícia Yanyawid lutou ao lado das forças de Bashir contra os rebeldes no conflito. Embora não tivesse treinamento militar formal, Hemedti conseguiu conquistar uma posição na máquina de segurança de Bashir. Ele 2013, ele assumiu a liderança do grupo paramilitar recém-formado FAR, que surgiu da Yanyawid.

Com frequência, Bashir contava com o grupo paramilitar para reprimir os protestos e o descontentamento que levaram à sua queda. À medida que as FAR cresciam e se fortaleciam, crescia a preocupação de que o grupo estivesse se tornando mais poderoso do que as forças de segurança oficiais do Sudão.

Em 2017, o país aprovou uma lei que reconheceu as FAR como uma força de segurança independente.

Como Burhan, Hemedti passou para o lado vencedor após a queda de Bashir. Relatos sobre ele especulando o papel de presidente se espalharam depois dele ter se tornado o  vice-líder do Conselho Militar de Transição.

Em junho de 2019, uma repressão mortal num acampamento de protestos em Cartum deixou mais de 100 mortos. A ação foi atribuída às FAR. Apesar disso, a posição de Hemedti só se fortaleceu. Seus anos à frente das FAR também o levaram a acumular aliados na Rússia e no Golfo, onde o grupo paramilitar foi enviado para lutar ao lado da coalizão liderada pela Arábia Saudita no Iêmen.

Burhan contou com as FAR para reprimir os protestos após o golpe de 2021. O líder paramilitar, porém, desapareceu dos holofotes na época, deixando Burhan ser o rosto do golpe. Hemedti foi então nomeado chefe adjunto do Conselho Soberano do governo, sendo efetivamente o número dois de Burhan.

Como eclodiu o atual conflito?

O atual conflito foi desencadeado devido às negociações de uma reforma do setor de segurança. Desde que as forças militares e representantes civis assinaram em dezembro um acordo de transição, estão em andamento negociações para integrar as FAR ao Exército sudanês. Essa integração poderia significar a perda de influência de paramilitares.

Analistas acreditam que Hemedti, cujo grupo paramilitar é estimado em 100 mil homens, não seria a favor da reestruturação. Em fevereiro, num discurso que chamou o golpe de "erro", Hemedti descreveu a ação como a "porta de entrada para o antigo regime". O discurso televisionado ocorreu em meio às crescentes tensões sobre a reestruturação militar, que descarrilhou o retorno ao regime civil.

Uma semana antes do discurso, Burhan disse que não toleraria as FAR operando de forma independente, enfatizando a importância da fusão do grupo paramilitar com o Exército. Em resposta, Hemedti disse que "representantes do antigo regime" queriam "provocar uma cisão" entre as FAR e as forças armadas.

Segundo Christine Roehrs, da Fundação Friedrich-Ebert em Cartum, a aliança entre os dois rivais nunca foi estável. "Quando eles tinham interesses em comum, eles trabalhavam juntos, como no golpe conjunto contra o então governo interino, em outubro de 2021. Agora, porém, os interesses divergem sobre as futuras relações entre Exército e milícias, e os ex-parceiros se tornaram adversários", explica a especialista.

Apesar da atual rivalidade explícita, a presidente do Fórum do Sudão e Sudão do Sul, Marina Peter, acrescenta que Burhan e Hemedti continuam mutuamente ligados pelo medo de serem responsabilizados por suas ações. "Ambos têm um passado militar, ambos são filhos adotivos de Bashir, embora de formas diferentes."

Peter destaca que grande parte da sociedade civil exige que os dois sejam responsabilidades por violações cometidas: "Hemedti pelos crimes cometidos em Darfur, e Burhan por aqueles cometidos durante a revolta de 2019 contra Bashir. Ambos têm medo disso."

Adiamento da transição democrática

A assinatura de um acordo para nomear um governo civil estava marcada para o início de abril, mas foi indefinidamente adiada no último minuto. O acordo era considerado vital para permitir eleições que trariam a liderança civil de volta ao comando do país, depois de anos de turbulência.

Em meados de abril, dias antes de o conflito eclodir, o Exército sudanês havia alertado que o país atravessava uma "conjuntura perigosa" que poderia levar a um conflito armado depois que unidades das FAR, o grupo paramilitar mais poderoso do Sudão, "se mobilizaram" em Cartum e em outras cidades. As FAR deslocaram tropas para perto da cidade de Merowe, localizada 330 quilômetros ao norte de Cartum.

Depois que os confrontos eclodiram em 16 de abril, Hemedti e Burhan trocaram acusações de tentativas de golpe.

Para além de interesses políticos

Interesses econômicos também podem estar por trás do atual conflito, ou seja, também estaria em jogo o controle de recursos minerais. O Sudão possui consideráveis reservas de ouro, que interessam à Rússia.

Em 2017, o então ditador Bashir afirmou num encontro com o presidente russo, Vladimir Putin, que o Sudão poderia ser "a chave da África" para a Rússia. Na época, a russa M-Invest – uma empresa de fachada do Grupo Wagner, segundo o Departamento do Tesouro dos EUA – recebeu o direito de exploração de minas sudanesas. Atualmente, essas minas são exploradas pela M-Invest em parceira com as FAR.

Outros países também têm interesse no Sudão. O Egito aposta num governo estendido de Burhan e, por isso, o apoia, afirma Marina Peter. No início de abril, os dois países chegaram a realizar um exercício militar conjunto. O Cairo presta ainda assistência humanitária no Sudão, por exemplo, durante as enchentes que ocorreram no ano passado.

Já Hemedti possui boas relações com a Eritreia, Etiópia e Iêmen, onde milícias sob seu comando atuaram. Devido à exploração do ouro em parceria com a Rússia, ele possui ligações próximas com Moscou.

Impotência da sociedade civil

Segundo Christine Roehrs, tanto Burhan quanto Hemedti lutam atualmente por poder e influência. "Eles travam essa batalha pelas costas dos civis, e embora ambos saibam que milhões de sudaneses se colocaram contra um regime militar e a favor da democracia já na revolução de 2018", pontua.

Por esse motivo, Peter afirma que não se pode falar de uma guerra civil iminente. "Isso não é de forma alguma uma guerra civil, mas uma luta pelo poder entre dois atores. A sociedade civil sempre continuou tentando impor reformas democráticas", afirma, acrescentando que ativistas pela democracia sempre viram as milícias e os militares como obstáculo à paz e à mudança de governo.