Foi aprovado nesta quinta-feira (17) na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, que institui a Lei Geral do Licenciamento Ambiental. O texto, aprovado com 267 votos a favor contra 116, vem sendo tratado por partidos de esquerda, movimentos populares e ambientalistas como “PL da Devastação” ou “PL mãe de todas as boiadas”, por conta da quantidade de retrocessos ambientais identificados nele.
29 das 32 emendas foram aprovadas e o resultado foi proclamado às 3h40 da madrugada, entre elas, uma proposta pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), que pode acelerar a exploração de petróleo na margem equatorial. A inserção determina que a resposta sobre licenças deve ser dada em até um ano.
O texto segue agora para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e é alvo de críticas por desconsiderar a crise climática, enfraquecer a legislação ambiental e ameaçar direitos de povos e comunidades tradicionais.
O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), se posicionou contra a proposta e afirmou que os votos da base governista foram alinhados previamente com a ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede).
O PL 2.159/2021 reformula a base do licenciamento ambiental brasileiro ao flexibilizar regras e permitir a dispensa de licenças para uma série de atividades, especialmente no setor agropecuário. A proposta amplia o uso da Licença por Adesão e Compromisso (LAC) inclusive para empreendimentos de médio impacto, por meio de autodeclaração e sem análise técnica prévia – medida que contraria decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e ignora o princípio da precaução.
O texto também desvincula o licenciamento da outorga de uso da água e da regularização do solo, fragilizando a gestão ambiental integrada e aumentando o risco de degradação e conflitos.
Além disso, o projeto enfraquece a participação de órgãos técnicos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), cujas manifestações deixam de ter poder de veto, inclusive em casos que envolvem territórios não regularizados e unidades de conservação.
Condicionantes ambientais são desvalorizadas, e o texto não estabelece critérios nacionais mínimos para o licenciamento, repassando a definição aos estados e municípios, o que, segundo especialistas (leia relatório na íntegra), pode gerar insegurança jurídica.
Tramitação sob tutela da direita
Aprovado na Câmara dos Deputados ainda em 2021, durante o governo Bolsonaro e sob forte pressão do agronegócio, o PL foi aprovado no Senado no último mês de maio, com 54 votos favoráveis e 13 contrários, retornando à Câmara para análise final das emendas.
Durante toda a tramitação, a proposta teve tutela especial da direita e da bancada ruralista. O PL teve como primeira relatora no Senado a senadora Kátia Abreu (PP-TO), mas foi conduzido à aprovação pela senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro (PL). Na Câmara, o relator foi o deputado Zé Vitor (PL-MG), eleito à sombra do ex-presidente, que defende tratar-se de uma medida administrativa para “vencer a burocracia”, nas palavras dele.
As emendas incluídas pelo Senado agravaram ainda mais os impactos do PL. Entre os principais retrocessos está a inclusão de grandes empreendimentos de mineração na dispensa de licenciamento, a criação da Licença Ambiental Especial (LAE) – que permite licenças em fase única para projetos “estratégicos” definidos pelo governo – e a liberação de obras viárias em áreas ambientalmente sensíveis, sem avaliação de impactos indiretos.
Também foram flexibilizadas as regras para projetos de “segurança energética”, com critérios genéricos que facilitam o licenciamento de empreendimentos altamente poluentes. Por fim, a revogação de trechos da Lei da Mata Atlântica permite o desmatamento de áreas maduras do bioma, inclusive em zonas urbanas, ameaçando compromissos climáticos assumidos pelo país.
Manifesto e crítica de organizações
Mais de 350 entidades de diferentes áreas lançaram um manifesto conjunto contra a proposta, entregue a parlamentares e integrantes do governo. O grupo reúne movimentos populares, organizações indígenas, ambientalistas, instituições acadêmicas e sindicais, como Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Observatório do Clima.
O texto denuncia que o projeto compromete direitos fundamentais como a saúde e o meio ambiente equilibrado, ignora a crise climática e ameaça conquistas históricas da legislação ambiental brasileira. Para as entidades, qualquer modernização do licenciamento deve estar ancorada na Constituição, em critérios técnicos e participação social.
Após a aprovação, o Greenpeace Brasil emitiu uma nota reforçando que este é “o maior retrocesso ambiental dos últimos 40 anos” e pedindo ao presidente Lula o veto integral do texto. “A aprovação do PL da Devastação demonstra que os nossos parlamentares estão mais preocupados em destruir do que aprimorar a legislação ambiental, esvaziando a capacidade do Estado de prevenir e mitigar os impactos de obras Brasil afora. O momento é crítico, mas esperamos que parte dessa lambança feita pelo Congresso Nacional possa ser revertida na sanção presidencial. Veta tudo, Lula!”, diz Gabriela Nepomuceno, especialista em Políticas Públicas da Organização.
Em nota, a WWF também exigiu o veto integral do projeto, afirmando que a decisão foi tomada sem diálogo com a sociedade e que os impactos serão “irreversíveis para as pessoas, o clima e a biodiversidade”. “Em pleno ano da COP30, que será realizada em Belém (PA) em novembro, o Congresso escolheu passar a mãe de todas as boiadas, ao invés de avançar no enfrentamento da crise climática. A aprovação do PL da Devastação ameaça a liderança do Brasil nas negociações internacionais sobre o clima, além de colocar em risco parcerias comerciais e o acesso a financiamentos que exigem o cumprimento de salvaguardas socioambientais.”
Mata Atlântica sob ameaça
Entre os impactos mais graves apontados por especialistas está a ameaça direta à proteção da Mata Atlântica. O Pacto pela Restauração da Mata Atlântica afirma que o projeto, ao flexibilizar normas ambientais e permitir brechas para o desmatamento, coloca em risco um bioma essencial para a estabilidade climática, o abastecimento de água e a biodiversidade no país.
Segundo a organização, a revogação de dispositivos da Lei da Mata Atlântica poderá facilitar a supressão de vegetação nativa mesmo em áreas urbanas, violando tratados internacionais e ampliando os efeitos da crise climática.
Entenda ponto a ponto
Licença por Adesão e Compromisso (LAC) – art. 21
O projeto amplia o uso da LAC, permitindo que empreendimentos obtenham autolicenciamento sem vistoria ou análise técnica prévia. Essa flexibilização contraria decisões do STF, que limitam o uso da LAC a atividades de baixo risco. A proposta esvazia a atuação dos órgãos ambientais e torna as vistorias exceção, em vez de regra.
Agronegócio e outras atividades livres de licenciamento – art. 8 e 9
O texto libera atividades agropecuárias por meio de autodeclaração, sem exigir análise de impacto ambiental. Mesmo após ajustes feitos no Senado, a proposta continua desrespeitando decisões do STF que consideraram inconstitucionais normas semelhantes. A medida favorece o avanço do agronegócio sobre áreas verdes, fragiliza o controle estatal e aprofunda riscos ambientais e jurídicos.
Uso da água e do solo – art. 16
O projeto desobriga o empreendedor de apresentar, no processo de licenciamento, documentos que atestem o uso legal da água e do solo. Isso compromete a gestão integrada de recursos hídricos, enfraquece a segurança hídrica e agrava potenciais conflitos ambientais, especialmente diante de eventos climáticos extremos.
Participação das autoridades envolvidas – art. 38 a 42
O texto reduz a obrigatoriedade de participação de órgãos como Funai, Iphan e ICMBio, além de excluir terras indígenas não homologadas e territórios quilombolas sem titulação de áreas que deveriam ser protegidas. Ainda determina que pareceres não são vinculantes e que a ausência de manifestação não impede a emissão de licenças. De acordo com movimentos, medida viola a Constituição e ameaça diretamente os direitos de povos e comunidades tradicionais.
Condicionantes ambientais e responsabilidade – art. 13
As condicionantes ambientais – medidas exigidas para mitigar e compensar impactos – perdem força com o novo texto. As exigências aos empreendedores são reduzidas, comprometendo o equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental.
Ausência de critérios nacionais mínimos – art. 4
O projeto não estabelece uma lista mínima de atividades que devem ser obrigatoriamente licenciadas, transferindo essa definição a estados e municípios. Isso fragmenta a legislação ambiental, promove insegurança jurídica e contraria a competência da União prevista no artigo 24 da Constituição. Para especialistas, a omissão compromete a uniformidade da política ambiental em todo o país.
Emendas consideradas retrocessos incluídas pelo Senado
Emenda nº 1 – Inclusão da mineração
A nova redação permite que grandes empreendimentos minerários de alto risco se enquadrem nas regras da nova lei, o que havia sido vetado na versão aprovada originalmente pela Câmara. A mudança representa um risco direto à integridade de áreas sensíveis e comunidades afetadas por esse tipo de atividade.
Emenda nº 3 – Criação da Licença Ambiental Especial (LAE)
A emenda cria a figura da LAE, permitindo que o Conselho de Governo – órgão ligado à Presidência da República – indique projetos “estratégicos” para receber licenças em fase única, sem controle técnico. A medida enfraquece o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), abre espaço para favorecimentos políticos e fere princípios constitucionais como impessoalidade e prevenção.
Emenda nº 9 – Obras viárias em áreas sensíveis
Essa emenda introduz brechas para dispensar licenciamento ambiental em obras de pavimentação, inclusive em áreas ambientalmente frágeis. Ela pode viabilizar, por exemplo, a retomada da BR-319, considerada de alto risco para o avanço do desmatamento na Amazônia. A medida ignora impactos indiretos e viola o artigo 225 da Constituição.
Emenda nº 11 – Projetos de “segurança energética”
Com critérios vagos e subjetivos, a emenda permite que grandes empreendimentos com alto impacto socioambiental sejam classificados como prioritários e recebam licenciamento simplificado. A mudança reduz o controle sobre projetos que deveriam passar por rigorosa avaliação.
Emenda nº 28 – Revogação da Lei da Mata Atlântica
Um dos pontos mais criticados, essa emenda permite o desmatamento de áreas primárias e maduras da Mata Atlântica sem análise prévia de órgãos ambientais. A medida facilita a supressão vegetal até em áreas urbanas e fere compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como o Acordo de Paris.