Por José Heleno Ferreira
No final da década de 1970, brasileiras e brasileiros saíam às ruas pela anistia às pessoas que haviam sido presas e ou exiladas pela ditadura civil-militar. Foi este, sem dúvida, um momento bonito de nossa história, quando ruas e praças voltaram a sentir a vibração, as cores e a energia da esperança que nos movia rumo à conquista da liberdade, da volta da democracia.
Pouco a pouco, as bandeiras populares voltavam às praças, os muros se enchiam de cartazes e pichações afirmando que “Zé Povo Ama Ana Istia”, numa demonstração da irreverência e da capacidade criativa do nosso povo. Dos rádios, vinha a voz de Elis Regina cantando os versos de João Bosco, em “O Bêbado e a Equilibrista”, nos encorajando a sonhar “com a volta do irmão do Henfil / com tanta gente que partiu / num rabo de foguete”.
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E, embora soubéssemos que “Marias e Clarisses” ainda chorassem “no solo do Brasil”, sabíamos também que “uma dor assim pungente” não haveria “de ser inutilmente”. E “a esperança equilibrista”, mesmo sabendo que poderia “se machucar”, continuava dançando “numa corda bamba de sombrinha”, anunciando novos tempos, novas possibilidades.
Em 1979, acompanhávamos a volta de exilados e, logo depois, a libertação de presos políticos.
A palavra “anistia” embalou nossos sonhos e contribuiu com a formação política de toda uma geração que não aceitava o autoritarismo e a tortura. Que teimava em sonhar e construir uma nação para todo o povo.
Mas nesse jogo de forças que caracteriza as relações políticas, a vitória foi parcial, uma vez que foram anistiados também os torturadores e todos os responsáveis pelos crimes do Estado brasileiro contra aqueles e aquelas que lutaram contra a ditadura civil-militar. E, ao contrário do que aconteceu noutros países, aqui, golpistas e torturadores garantiram a sua impunidade, pavimentando a estrada para novos golpes.
A origem, a história e o uso social das palavras
De acordo com João Feres (IESP – UERJ), anistia é uma palavra de origem grega, cujo significado é esquecimento. No entanto, sabemos bem que o significado das palavras é construído socialmente. As palavras têm história e é justamente esse processo histórico que lhes confere significado. E, na história do povo brasileiro, Anistia tornou-se sinônimo de luta pela liberdade.
Por outro lado, sabemos também que o esquecimento – a impunidade – pode contribuir para que os fatos se repitam. E isso também a história deste país, marcado por sucessivos golpes, desde a Noite da Agonia, em 11 de novembro de 1823, nos mostra.
Ao longo da nossa história, golpistas nunca foram efetivamente responsabilizados por seus crimes e isso, sem dúvida, pode explicar os motivos pelos quais, tantos golpes aconteceram ao longo dos últimos dois séculos.
O sequestro do sentido da palavra
O que temos acompanhado no Brasil, nos últimos meses, travestida de luta por anistia, é a tentativa de garantir a impunidade de golpistas que tramaram a tomada do Estado, que negaram os resultados eleitorais, que buscavam se perpetuar no poder após um longo período de quatro anos marcado por todos os tipos de corrupção e de desrespeito aos direitos humanos.
Isso não merece o nome de anistia – há que se repetir: o que se busca é a impunidade.
A luta por justiça, por memória e verdade é uma das facetas fundamentais da Educação em Direitos Humanos. É preciso lembrar – para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. E é preciso também reafirmar o sentido histórico, ligado às lutas do povo brasileiro, da palavra anistia, que não pode estar associada à impunidade, mas, sim, à justiça e à liberdade.
É preciso educar para a construção de um novo mundo possível, mas é preciso também educar para o nunca mais. E, por isso, vale a pena cantar com Jonathan Silva: “se acontecer afinal / de entrar em nosso quintal / a palavra tirania / pegue o tambor e o ganzá / vamos pra rua gritar / a palavra utopia”!
José Heleno Ferreira é doutor em Educação (PUC MG) e membro da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos – Coord. Minas Gerais. Email: [email protected].
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Leia outros artigos sobre direitos humanos na coluna Educação em Direitos Humanos em Pauta no jornal Brasil de Fato
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Este é um artigo de opinião, a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal