vantagem da Rússia

Ucrânia aumenta recrutamento com lei impopular em fase de ofensiva russa na guerra

Todos os homens entre 18 e 60 passam a poder ser convocados, até mesmo quem mora no exterior

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Soldados ucranianos entrincheirados em Donetsk, no leste da Ucrânia. - Anatoli Stepanov / AFP

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, assinou na última terça-feira (16), uma lei que endurece a convocação para o exército. A medida acontece em meio à intensificação da ofensiva russa e da movimentação do Ocidente para garantir a defesa ucraniana e evitar e desmantelamento de sua linha de frente.

O novo documento sobre a mobilização de civis visa ampliar o recrutamento de soldados para lutar na guerra. O projeto é impopular e gerou bastante controvérsia no parlamento e na sociedade da Ucrânia.

O documento prevê que todos os homens com idades entre 18 e 60 anos serão obrigados a atualizar seus registros militares, inclusive quem mora no exterior. Além disso, enquanto a lei marcial estiver em vigor, os homens na Ucrânia serão obrigados a portar documentos de registo militar em todos os momentos e apresentá-los sempre que forem solicitados por autoridades militares e policiais.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, explicou que a mudança mais importante na mais recente legislação sobre a mobilização da Ucrânia é a obrigatoriedade de todos os homens ucranianos de 18 a 60 anos estarem registrados nos órgãos militares.

"Se eles não fizerem isso em 60 dias, então os centros de composição do exército poderão se dirigir à polícia para condução dessas pessoas para os postos militares. A polícia vai à casa dessas pessoas, detê-las onde elas estiverem e levar aos centros de composição (do exército). Se a polícia não conseguir achar o paradeiro dessas pessoas, então o exército vai se dirigir ao sistema judicial, e o tribunal vai estabelecer restrições para estas pessoas", explica.

Estas restrições judiciais que podem ser impostas aos cidadãos dizem respeito à proibição de tirar licença de motorista, obter cartão de crédito, e receber quaisquer serviços administrativos como a emissão de documentos, seja na Ucrânia ou fora do país, nos seus respectivos órgãos consulares. Isso implica na impossibilidade de renovar passaportes para os ucranianos que estão fora do país, por exemplo.

"Tudo que aconteceu na Ucrânia em torno do recrutamento antes, incluindo relatos de detenções forçadas (para o exército) de homens ucranianos, antes eram ilegais. Agora estas práticas estão sendo legalizadas, estas detenções forçadas nas ruas poderão ser consideradas ações legais por órgãos administrativos locais, incluindo a polícia", afirmou Bortnik.

O projeto é impopular e gerou bastante controvérsia no parlamento e na sociedade da Ucrânia. Pesquisas apontam que, entre os que ainda não foram para a guerra, 63% dos homens ucranianos não querem servir no exército, e apenas 20% dos homens ucranianos estão dispostos a considerar tal possibilidade. O analista Ruslan Bortnik aponta, no entanto, que a insatisfação e o desgaste da população com a guerra não deve gerar um cenário de protestos na Ucrânia.

"A sociedade também está insatisfeita, em geral considerando isso uma séria restrição dos seus direitos, mas ao mesmo tempo não vai haver protestos públicos, porque quaisquer protestos e declarações públicas sobre esse tipo de insatisfação será interpretado como colaboração com a Rússia, colaboração com o agressor, como uma atividade que serve aos interesses do inimigo, como traição. Por isso a insatisfação vai ganhar força, os índices de aprovação do governo devem baixar gradualmente, mas não devem haver protestos", afirma.

"Na sociedade ucraniana houve um acúmulo de cansaço em relação à guerra. As pesquisas sociológicas mostram que agora a maioria da população considera que o país está indo na direção errada, mas quando as tropas russas estavam perto de Kiev a maioria da população acreditava que as autoridades estavam na direção certa. Apesar de que a situação real  no campo de batalha hoje está significativamente melhor do que em fevereiro de 2022. Isso é justamente o aumento desse cansaço, junto com a ausência de perspectivas de resolução deste conflito", analisa Ruslan Bortnik

Em fevereiro de 2024, uma pesquisa feita pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev mostrou que mais de 70% dos ucranianos são a favor de uma solução diplomática do conflito com a Rússia.

"Os ucranianos continuam abertos ao processo de negociação. Em maio de 2022, 59% [eram a favor das negociações] e, em fevereiro de 2024, 72% dos entrevistados concordaram com a opinião de que a Ucrânia também deveria procurar uma forma diplomática de acabar com a guerra", diz o estudo.

Lobby de militares e do Ocidente

Paralelamente, na mesma semana, os EUA se movimentaram para aprovar um novo pacote de ajuda militar à Ucrânia, pauta que estava emperrada havia meses. E as lideranças ocidentais destacaram o momento difícil das tropas ucranianas para resistir à ofensiva russa. E não foi por acaso que isso aconteceu logo após a aprovação da nova lei de recrutamento ucraniana.

Ela foi adotada por pressão do comando militar da Ucrânia. O cientista político Ruslan Bortnik observa que os oficiais militares fizeram declarações diretas de que a Ucrânia não seguraria a linha de frente contra a Rússia se não houvesse novo recrutamento no país. Segundo ele, muitas brigadas militares da defesa ucraniana estavam preenchidas em 20-40% de todo o contingente necessário.

Por outro lado, o analista aponta que a segunda parte que exerceu pressão sobre a autoridade política ucraniana para ampliar o alistamento foram os aliados ocidentais da Ucrânia, que correlacionaram a realização de outro alistamento com o processo de fornecimento de uma nova ajuda militar à Ucrânia.

"Vimos que isso coincidiu com o momento logo depois da assinatura do presidente da Ucrânia sobre a lei de recrutamento, apenas em alguns dias foi descongelada a questão sobre uma ajuda militar estadunidense à Ucrânia", afirma.

O recrutamento de mais civis para a guerra na Ucrânia, a nova ajuda militar e a preocupação do Ocidente são fatores conectados. A Rússia detém a iniciativa na guerra e, segundo o cientista político Ruslan Bortnik, essas iniciativas conseguem impedir que a Rússia tome grandes territórios e desmantele o exército ucraniano. Mas a longo prazo, segundo o analista, a guerra exigirá da Ucrânia recursos militares mais significativos e uma mudança de estratégia. 

De acordo com o cientista político, a expectativa é de que o pacote de ajuda militar dos EUA e a nova onda de recrutamento ucraniana permitam à Ucrânia estabilizar a linha de frente, pelo menos até a realização das eleições presidenciais dos EUA.

"Por enquanto o recrutamento e ajuda financeira dos EUA devem impedir a Rússia de tomar grandes territórios e desmantelar o exército ucraniano, e criar uma ameaça de capitulação da Ucrânia e o fim da guerra como um todo", argumenta.

Ruslan Bortnik analisa que agora a situação no campo de batalha é "muito difícil" para a Ucrânia, pois a Rússia realiza uma ofensiva em no mínimo 12 direções diferentes. "A Rússia não consegue realizar nenhuma ruptura operacional profunda, mas pressiona as forças armadas da Ucrânia em muitas direções", acrescenta.

"Nós estamos em uma situação de ‘guerra por esgotamento’, mas nesta fase de guerra por esgotamento, a Rússia tem a iniciativa militar, e é ela que busca atacar. Não acho que a Rússia faz uma aposta em nenhum grande golpe decisivo, por isso não realiza um recrutamento de grande escala. A Rússia aposta em uma vitória ‘por pontos’, em uma longa guerra de esgotamento, que busca  esgotar a Ucrânia e a paciência do Ocidente", completa.

Edição: Rodrigo Durão Coelho