duas narrativas

Atentado em Moscou: Rússia e Ocidente travam guerra de versões sobre 'rastro ucraniano'

Moscou reforça a tese sobre o envolvimento da Ucrânia no ataque que matou 140 pessoas

Brasil de Fato | São Petersburgo (Rússia) |
Praça Vermelha fechada em Moscou, em 23 de março de 2024, um dia após o atentado terrorista na sala de concerto Crocus City Hall, nos arredores da capital russa. - Tatyana Makeyeva / AFP

O Comitê de Investigação da Rússia anunciou na quinta-feira (28) que encontrou provas de conexão entre os acusados do recente atentado em Moscou e “nacionalistas ucranianos”, confirmando o caminho que as autoridades já vinham apontando sobre o “rastro ucraniano” no ato terrorista. A resolução do caso, no entanto, está longe de ser consenso, e já criou novo capítulo na discórdia entre Rússia e Ocidente.

A cronologia do ‘rastro ucraniano’

A tese sobre o “rastro ucraniano” no ataque em uma sala de concerto em Moscou, que deixou pelo menos 140 mortos e mais de 350 feridos em 22 de março, foi verbalizada por autoridades russas nas primeiras horas após o incidente, e reiterada pelo presidente, Vladimir Putin, no dia seguinte. Na última segunda-feira (25), tanto o líder russo quanto o o Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) reforçaram a versão.

"O ataque terrorista em 'Crocus' foi preparado por radicais islâmicos, mas tanto os serviços de inteligência ocidentais como os serviços de inteligência ucranianos estiveram diretamente envolvidos nele. Em termos gerais, acreditamos que eles estão envolvidos nisso. Há informações que indicam que essa parte é tendenciosa na preparação desta ação. A Ucrânia treinou militantes no Oriente Médio", disse o chefe do FSB, Alexander Bortnikov.

Na mesma noite do atentado, após surgirem os primeiros relatos, em canais de telegram do grupo extremista Estado Islâmico (EI) reivindicando o atentado, os EUA buscaram imediatamente desconectar a Ucrânia do ataque em Moscou.

"Não há nenhuma indicação neste momento de que a Ucrânia ou os ucranianos estivessem envolvidos no tiroteio. Mas, novamente, isso acabou de acontecer, estamos observando isso, mas eu devo desiludir vocês a esta hora de qualquer conexão com a Ucrânia", John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Posteriormente, veículos internacionais, como a agência Reuters e o jornal The New York Times, divulgaram que o "Estado Islâmico-Khorasan" (braço do grupo jihadista no Afeganistão) teria reivindicado o atentado, citando informações de inteligência sobre os preparativos para o ataque. A Rússia manteve distância desta versão.

Vladimir Putin fez questão de criticar o viés estadunidense, alegando que “os EUA, através de vários canais, estão tentando convencer os seus satélites e outros países do mundo de que não há alegadamente qualquer vestígio de Kiev no ataque terrorista em Moscou, que o sangrento ataque terrorista foi cometido por seguidores do Islã radical, membros da organização banida na Rússia Estado Islâmico”.

“O trabalho conjunto dos nossos serviços especiais e das agências de aplicação da lei deverá fornecer respostas a uma série de questões. Por exemplo, estarão as organizações islâmicas radicais, mesmo terroristas, realmente interessadas em atacar a Rússia?”, questionou o presidente.

Método e capacidade

Em entrevista ao Brasil de Fato, o vice-diretor do Instituto de História e Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov, ressaltou que a questão da divergência de versões não é tanto uma disputa, mas uma forma dos EUA “atrapalhar a investigação russa”.

Segundo o analista, é muito improvável que o Estado Islâmico esteja por trás do atentado em Moscou, considerando o tipo de método utilizado e a atual conjuntura, que, de acordo com ele, não corresponde com a atuação do grupo na Rússia.

“Atualmente a Rússia não representa para os terroristas islâmicos um objetivo prioritário. Em segundo lugar, o método do ataque do EI é completamente diferente, são homens-bomba, há declarações de ameaça, designação dos objetivos do ataque. Aqui trata-se de mercenários, que realizaram o atentado por dinheiro e tentaram fugir”, argumenta.

O cientista política aponta que a situação de confrontação da Rússia com a Ucrânia e o Ocidente diz mais sobre quem estaria por trás da organização do atentado na sala de concertos Crocus City Hall.


Sala de concertos Crocus City Hall em chamas após atentado em Moscou, em 22 de março de 2024. / STRINGER/AFP

Por outro lado, analistas apontam que a reivindicação do grupo jihadista Estado Islâmico parece ser legítima, o que ainda não comprova ou explica a realização do ataque em si por parte do grupo. Segundo o jornalista especializado em Oriente Médio, Ruslan Suleymanov, não dá para descartar a atuação do EI no atentado, considerando a verificação dos canais que reivindicaram o ato, mas, ao mesmo tempo, o analista observa que o ataque em Moscou não corresponde com as atuais capacidades da organização terrorista.

“Observando puramente de fora, a impressão que dá é que, sim, o Estado Islâmico (EI) poderia ter feito esse ato, poderiam ser militantes do EI, porque os canais do telegram que veiculam mensagens, fotos, vídeos do EI, reportam que eram militantes do grupo. Há um vídeo gravado em primeira pessoa, no qual os esses militantes realizam essa carnificina”, explica.

Ao mesmo tempo, Ruslan Suleymanov destaca que essa ação “não corresponde nem um pouco com o que é o Estado Islâmico nos últimos anos”.

“O grupo foi praticamente destruído no Iraque e na Síria, ficando ‘adormecido’. Ele está disperso em vários países - Iraque, Síria, Afeganistão e Paquistão, e outros Estados africanos -, e na melhor das hipóteses o grupo consegue ter êxito em algumas incursões locais, ataques com alguns combatentes, concretamente no Afeganistão onde o Estado Islâmico está em confronto com o Talibã, e praticamente a única tática utilizada é de homens-bomba”, afirma,

“Fora do Afeganistão, essa  filial do EI, o Estado Islâmico-Khorasan, não realizou nenhum atentado. Isso tudo levanta questões. De que forma esse grupo conseguiria realizar uma ação dessa escala com uma quantidade enorme de armas, e não no Afeganistão, mas na Rússia, então por enquanto não dá pra entender muito”, completa.

Investigação aponta financiamento de ‘nacionalistas ucranianos’

Nesta quinta-feira (28), o Comitê de Investigação da Rússia deu novas declarações para sustentar a tese do envolvimento ucraniano, apesar de não apresentar provas concretas. De acordo com o órgão, o resultado do trabalho com os detidos suspeitos de realizar o ataque terrorista forneceu provas da “ligação com nacionalistas ucranianos”. Foi relatado que os investigadores têm informação de que os autores do ataque terrorista receberam “quantias significativas” de dinheiro do território da Ucrânia, que foram utilizadas na preparação do ataque à sala de concertos em Moscou.

“Como resultado do trabalho com terroristas detidos, do estudo dos dispositivos técnicos apreendidos deles e da análise de informações sobre transações financeiras, foram obtidas evidências de sua ligação com os nacionalistas ucranianos. A investigação tem à sua disposição dados confirmados de que os autores do ataque terrorista receberam quantias significativas de dinheiro e criptomoedas da Ucrânia, que foram utilizadas na preparação do crime”, diz o comunicado do Comitê de Investigação.

O órgão também anunciou a prisão de outro suspeito de participação no financiamento de terroristas. Em 26 de março, o tribunal de Moscou prendeu o oitavo réu no caso do ataque terrorista. No total, as forças de segurança russa detiveram 11 pessoas pelo envolvimento na ação em Moscou, sendo que algumas ainda estão sendo interrogadas e não foram julgadas.

Consequências para a guerra

A diplomacia russa já deixou claro que rechaça a ideia de uma colaboração do Ocidente na investigação do atentado e no combate ao terrorismo no país. Segundo o chanceler Serguei Lavrov, uma assistência ocidental neste caso teria um viés premeditado. O ministro reforçou a desconfiança sobre a abordagem ocidental sobre o caso.

“Interessante que aparentemente apenas um dia após o ataque terrorista, foram feitas declarações no Ocidente de que, claro, não era a Ucrânia e, claro, era o Estado Islâmico. Ao mesmo tempo, a liderança da Interpol anunciou repentinamente que estaria pronta para ajudar na investigação. Não me lembro de tal iniciativa da Interpol em casos anteriores, que também exigiam a maior atenção internacional”, destacou.

De acordo com Lavrov, qualquer ajuda ocidental na investigação “seria uma manifestação de ‘duplos padrões’ e terá muito provavelmente como objetivo promover uma teoria conveniente para o Ocidente de que o Estado Islâmico fez isso e que a Ucrânia não tem nada a ver com isso”, completou.

Apesar da investigação das autoridades russas oficialmente ainda estar em curso, tudo indica que a versão final russa terá a Ucrânia como principal fonte do atentado. E também parece claro que o Ocidente sustentará a versão oposta.

Assim, uma coisa já parece certa: o ataque em Moscou e o conflito de versões sobre o atentado já reforçou a discórdia entre a Rússia e o Ocidente na política internacional. E, dependendo do quanto a resolução final do Comitê de Investigação da Rússia apontar para o que se chama de “rastro ucraniano”, o ataque pode ter sérios impactos para a guerra da Ucrânia.

De acordo com o analista Ruslan Suleymanov, ‘de qualquer forma a posição da Rússia será de tentar extrair algum proveito deste atentado, buscando unir a sociedade e converter essa possível união [a seu favor]”

“O governo tentará fazer de tudo para unir as pessoas, e, teoricamente, pode anunciar uma nova onda de mobilização [de civis para a guerra], anunciar alguma nova incursão em Kharkov [cidade do leste ucraniano], etc. Putin, para quem o problema mais importante ainda é a Ucrânia, tentará direcionar toda a reação ao atentado na direção da Ucrânia”, completou.

Edição: Rodrigo Durão Coelho