Coluna

O Eduardo Leite com jaleco e sem jaleco

Imagem de perfil do Colunistaesd
Seu training dramatúrgico esbarra na rarefação da empatia que não lhe permitiu o recurso da lágrima - Twitter/Eduardo Leite
Sem jaleco, não gosta de aparecer. Prefere a solidão do gabinete onde conversa sem microfones

Por duas vezes, uma em setembro do ano passado, e outra neste momento, o Rio Grande do Sul está tendo a rara oportunidade de apreciar um personagem invulgar: o Eduardo Leite de jaleco. É um personagem este Eduardo Leite de jaleco porque é impossível não perceber o intérprete dentro do colete alaranjado. 

O jaleco transforma Eduardo Leite em protagonista de um roteiro que ele mesmo escreveu. Sente-se à vontade representando o governante pungente, pesaroso, mas de vontade inquebrantável para enfrentar o apocalipse que se abateu sobre o Rio Grande. É uma performance despojada, austera, à meia voz, que prepondera entre escombros. Sempre imantada e ativada pela proximidade das câmeras e microfones.

É possível até que possa chorar, o que não fez. Seu training dramatúrgico esbarra na rarefação da empatia que não lhe permitiu o recurso da lágrima.

Mesmo assim, convenhamos, o Eduardo de jaleco é um acontecimento que impacta. Tanto que o âncora do principal jornal televisivo do país foi a campo entrevistá-lo à cata de alguma migalha de notícia e dele somente extraiu platitudes. Talvez porque lhe fugiu a pergunta cuja obviedade grita: "Por que seu governo não fez algo para impedir que a tragédia se repetisse?"

Compreende-se, seria um questionamento que aborreceria o Eduardo de jaleco. Se existe algo que detesta é alguém invocar o Eduardo sem jaleco justamente para surpreendê-lo no papel do Eduardo de jaleco.

Ocorre que o Eduardo sem jaleco não gosta de aparecer. Prefere a solidão do gabinete onde conversa sem TVs, microfones ou canetas com seus áulicos do Palácio Piratini ou do prédio contíguo, um puxadinho do seu palácio chamado Assembleia Legislativa. São conversas muito produtivas para muitos mas não para o meio ambiente

Em 2019, o Eduardo sem jaleco trucidou o Código Estadual de Meio Ambiente. O código fora elaborado ao longo de nove frutíferos anos e promulgado em 2000. Em 75 dias, a cirurgia eduardiana mutilou ou amputou quase 500 artigos da lei para regozijo do agro pop ou impopular. Os 37 deputados que mantém dependurados no seu chaveiro fecharam a fatura.

Revogou-se o capítulo que estimulava a proteção ambiental, retirou-se o veto à comercialização e venda de florestas nativas. Acabou-se com o ítem que impedia a supressão de plantas sob risco de extinção. Implantou-se o "autolicenciamento", devaneio legislativo em que o Estado se abstém de fiscalizar e acredita piamente naquilo que declara o interessado. 

Pior para a preservação das matas, dos rios e campos nativos. Melhor para o empresariado mais voraz.

Contra a grande maioria da sociedade gaúcha, o Eduardo sem jaleco acalentou um sonho: a implantação da maior mina de carvão a céu aberto do continente às margens do Guaíba e defronte à Porto Alegre. Distante apenas 16 quilômetros da capital, ocuparia área equivalente a seis mil campos de futebol.

Ecologistas advertiram que haveria brutal contaminação da água e do ar por metais pesados – zinco, cobre, mercúrio, chumbo, cádmio – além da turbidez maior dos cursos de água com pó de carvão afetando flora, fauna e saúde humana.

À época, o secretário estadual de Meio Ambiente (!) e Infraestrutura, Artur Lemos, explicou que o polo carboquímico pretendia "criar uma nova cadeia produtiva". Lembrou que a ideia vinha do governo anterior (José Ivo Sartori, do MDB, mesmo grupo no poder com Leite). O desatino durou até 2021 quando, em meio à pandemia, o projeto acabou esquecido. Ao menos, por enquanto.

É lícito supor que, vingando a mina, com milhões de gaúchos sufocados pela poluição, o Eduardo de jaleco surgiria em cena distribuindo bombinhas para asma.

O bisturi do Eduardo sem jaleco também estripou a Lei dos Agrotóxicos, de 1982, editada contra fortes pressões da indústria do veneno e da ditadura. Pioneira no país, a lei impedia, por exemplo, que agrotóxicos proibidos nos países onde são fabricados fossem liberados no Brasil.

Em 2020, os 37 carimbadores legislativos de Leite chutaram a lei e derrubaram a exigência. O líder do governo na Assembleia, Frederico Antunes, do PP, ensinou à escumalha – leia-se, a população gaúcha – que "agroquímicos são como remédios e são aprovados por órgãos de acompanhamento".

Enquanto o vale do rio Taquari penava com as cheias que arrasaram suas cidades e cobraram mais de 50 vidas em setembro de 2023, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) passava sua boiada sobre o Zoneamento Ambiental para a Atividade da Silvicultura (ZAS). O movimento ambientalista chiou com a mudança, denunciando que a proposta ameaça o bioma Pampa e os campos nativos. E fora redigida por empresas contratadas pelo próprio setor a ser regulado...

Em março deste ano, os deputados amestrados do Eduardo sem jaleco exibiram outra vez sua fidelidade ao chefe. Deram 35 votos para permitir a construção de barragens e açudes em Áreas de Proteção Ambiental (APPs), confrontando, inclusive, a legislação federal.

Para a Agapan, mais antiga ONG ambiental do país, a aprovação, trocada em miúdos, significa autorizar mais desmatamento e mais uso da água para fins particulares. Da lavra do deputado Zucco (PL) ao tempo em que estava na Assembleia, o projeto cristaliza as afinidades entre dois negacionismos climáticos, o de unhas aparadas do governador tucano e o de garras afiadas do bolsonarismo-raiz.

* Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra e autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e "O País da Suruba" (Libretos, 2017).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires