Kleber Karipuna

Para coordenador da Apib, luta contra o PL do Marco Temporal vai além da votação no STF

Ele alerta que PL aprovado na Câmara também abre brecha para mineração em terras indígenas

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Karipuna afirma ter ouvido de Rodrigo Pacheco o compromisso de que PL do marco temporal terá análise cautelosa do Senado. - Antônio Cruz/ Agência Brasil
Estamos chamando um acampamento contra o marco temporal para essa semana, de 5 a 8 de junho.

Organizações indígenas se reuniram com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) na última semana, para entender como se dará a tramitação do PL 490 (no senado, PL 2903), no Congresso. O projeto, conhecido como Marco Temporal, por mudar a forma como são reconhecidas as demarcações de terras indígenas, recebeu tratamento de urgência pela Câmara dos Deputados, atropelando ritos da casa e até mesmo o STF (Supremo Tribunal Federal), que deverá tratar de matéria similar nesta semana.

Um dos presentes à reunião, o coordenador executivo da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Kleber Karipuna, afirma ter ouvido de Pacheco o compromisso de que haverá tempo suficiente para o debate no Congresso e que todos os envolvidos no processo serão escutados durante a tramitação do PL. 

“Nessa reunião nós colocamos todos os riscos, todas as inconstitucionalidades que contém no bojo do PL, e ele colocou para a gente o seu compromisso em tramitar de uma maneira mais cautelosa, porque ele entende que é uma pauta delicada, assim como outras pautas”, explica Karipuna.

O coordenador da APIB é o convidado desta semana no BDF Entrevista. Karipuna explica que, apesar da pressa na aprovação do PL pelos deputados, foi graças à articulação das organizações indígenas que atuam em Brasília que o projeto dormiu durante mais de 10 anos nas gavetas da Câmara Federal. 

“A gente já estava se movimentando há algum tempo atrás, tentando [impedir esse avanço]. É importante salientar que o PL é de 2007, ele está há mais de 10 anos tramitando e muito desse tempo de tramitação tem a ver com as várias estratégias nossas, de incidência, de articulação, para tentar extinguir de vez esse PL”, comenta. 

Outras estratégias poderão ser colocadas em jogo caso o projeto avance no Senado. Segundo Karipuna, a judicialização e um possível veto presidencial são possibilidades avaliadas pelas organizações indígenas. O STF, inclusive, colocou na pauta desta quarta-feira (7), o prosseguimento da análise da tese do Marco Temporal.

O caso em análise na Suprema Corte trata apenas sobre a demarcação de terra do povo Xokleng, que foi contestada pelo governo de Santa Catarina no Supremo. O argumento do executivo catarinense é que a área não estava ocupada em 5 de outubro de 1988, como determina o Marco Temporal. Já os indígenas Xokleng explicam que haviam sido expulsos de sua terra de origem e só por isso não ocupavam a área na promulgação da Constituição Federal. 

“Claro que o julgamento do Marco Temporal já nos ajudaria significativamente para derrubar essa questão. A gente considera que ele perde força, que ele enfraquece bastante, essa que é uma das principais cobiças da bancada ruralista, dos nossos inimigos. Inclusive, estamos chamando um acampamento contra o Marco Temporal para essa semana, de 5 a 8 de junho, para acompanhar a retomada do julgamento”, completa o coordenador da APIB.

Na conversa, Karipuna também comenta sobre o projeto de exploração de petróleo na Foz do Amazonas. A iniciativa da Petrobras, defendida por diversos setores do governo federal, foi vetada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), mas a pasta segue sob pressão.
Segundo Karipuna, povos indígenas da região já estão sendo afetados pelo projeto, ainda que a prospecção do petróleo esteja paralisada no momento.

“É um projeto que, inclusive, é ali na minha região, próximo ao município de Oiapoque, no Amapá. É onde estão os povos indígenas Karipuna, Galibi Marworno, Kali’na e Palikur, que reivindicam, na verdade, um melhor estudo, uma melhor avaliação. [Os indígenas da região] já estão sentindo na pele agora, ainda na fase de estudo, de prospecção, os impactos. A movimentação que cresceu gigantesca ali na região, o trânsito de aeronaves, helicópteros e aviões passando muito baixo por cima das terras indígenas, o trânsito nos rios que dão acesso também às terras indígenas aumentaram o fluxo”, aponta.

“Nós somos contra a forma como está sendo conduzido. Os povos do Oiapoque, inclusive, já manifestaram que não são contra o progresso. Aquelas terras indígenas são impactadas por empreendimentos desde a década de 1970, na abertura da BR-156, passagens de linhas de transmissão, a construção de pequenas centrais hidrelétricas, linhas de fibra ótica, enfim”, completa Karipuna.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Há uma agenda anti-indígena que tramita hoje no Congresso Nacional. Sobre a aprovação do Marco Temporal na Câmara, essa tese estava paralisada no Supremo Tribunal Federal e ganhou agilidade poucas vezes vista para avançar na Câmara. Qual é o tamanho desse retrocesso? 

Kleber Karipuna: Bom, infelizmente foi aprovado o PL 490 no plenário da Câmara. É um retrocesso enorme não só para a pauta da demarcação das terras indígenas, mas também para a pauta ambiental, climática, que é uma das principais agendas no mundo todo. E o mundo inteiro está preocupado e trabalhando em ações que visam combater essa catástrofe mundial.

A tese do Marco Temporal fixa uma data onde os povos indígenas teriam direito aos seus territórios, que é a data de cinco de outubro de 1988, contradizendo, inclusive, a própria Constituição Federal brasileira, que no seu artigo 231 é muito clara, quando fala do direito dos povos indígenas e o usufruto exclusivo dos seus territórios. 

[Esse artigo] reconhece sua forma de organização social, seus costumes, as suas tradições, e também fala sobre o direito originário, seu direito de origem. Inclusive, a questão das terras indígenas é uma cláusula pétrea na Constituição. 

Além disso, o PL aprovado agora traz também no seu bojo várias outras medidas que visam explorar a depredação dos territórios indígenas, a abertura para grandes empreendimentos, a mineração na terra indígena e o contato forçado com povos em isolamento voluntário. O Brasil é o país do mundo que detém a maior população de povos em isolamento em pleno século 21.

Esse PL é completamente inconstitucional e, pra gente, não deveria nem estar tramitando. Ele foi aprovado na câmara pelos deputados federais que todos vocês ajudaram a eleger, deputados que são contra os povos indígenas, contra o meio ambiente, contra as mudanças climáticas e contra os direitos humanos. Ele vai agora para o Senado e vamos continuar nossa luta, nossa batalha. 

Os indígenas se mobilizaram em várias partes do país para tentar barrar o avanço dessa pauta. Qual a expectativa de vocês com essa tramitação no Senado? A ideia é que o projeto seja enterrado por lá? A APIB, inclusive, se reuniu com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
 
A gente já estava se movimentando há algum tempo atrás, tentando [impedir esse avanço]. É importante salientar que o PL é de 2007, ele está há mais de 10 anos tramitando e muito desse tempo de tramitação tem a ver com as várias estratégias nossas, de incidência, de articulação, para tentar extinguir de vez esse PL. 

A estratégia, agora, continua. Inclusive, no mesmo dia 30 (data de aprovação do PL 490), fizemos uma reunião com o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Essa reunião também faz parte da nossa estratégia de diálogo, de articulação, para tentar barrar e eliminar esse PL agora no Senado. Agora ele ganhou um novo número, 2903 e inclusive já está aberto para enquete no Senado, para saber se as pessoas concordam ou não concordam com o PL. 

Nessa reunião que nós tivemos com o senador Rodrigo Pacheco, nós colocamos todos os riscos, todas as inconstitucionalidades que contém no bojo do PL, e ele colocou para a gente o seu compromisso em tramitar de uma maneira mais cautelosa, porque ele entende que é uma pauta delicada, assim como outras pautas.

Outra estratégia possível é o veto presidencial, mesmo sabendo que há também uma correlação de forças hoje no Congresso Nacional que, provavelmente, derrubaria esse veto, não é?
 
Sim, está também nas nossas estratégias essa questão do veto presidencial, assim como várias outras que a gente não está se antecipando, como a questão judicial, para não atropelar o processo de tramitação desse PL. 

O veto presidencial é uma das questões que a gente está analisando, mas justamente como você falou, há uma correlação de forças hoje - a gente pode ver isso muito claro agora na aprovação da MP 1154, de organização dos ministérios, o quanto foi necessário o próprio presidente Lula agir. 

O STF colocou em sua pauta de votação o Marco Temporal, no dia 7 de junho. Há a expectativa de que a corte o torne inconstitucional ? O projeto ficou parado na mão de alguns ministros por muito tempo, não é?
 
Sim, mas lembrando que a nossa incidência em relação ao PL 490 continua, porque ele não trata somente da questão da tese do Marco Temporal. O julgamento que está marcado para retomar no próximo dia 7 de junho trata exclusivamente sobre essa tese, de uma data fixada.

Claro que o julgamento do Marco Temporal já nos ajudaria significativamente para derrubar essa questão. A gente considera que ele perde força, que ele enfraquece bastante, essa que é uma das principais cobiças da bancada ruralista, dos nossos inimigos. 

Inclusive, estamos chamando um acampamento contra o Marco Temporal para essa semana, de 5 a 8 de junho, para acompanhar a retomada do julgamento. Como você bem falou, alguns ministros ficaram anos com ele paralisado, pediram vista do julgamento lá atrás. 

A gente espera agora que, de fato, ele seja retomado, que seja dado a devida continuidade que merece, sabendo que há uma possibilidade também muito grande de ter algum ministro pedindo vistas. A gente faz uma análise que o julgamento pode retomar dia 7 e pode se estender para a semana seguinte. Vamos ter um feriadão nesse fim de semana que vem.

Nós vamos continuar mobilizados se isso acontecer. O acampamento do Marco Temporal aqui em Brasília, nós temos uma expectativa de aproximadamente 2mil, 3 mil pessoas, lideranças que vêm de todo o Brasil e várias outras manifestações, mobilizações que vão ocorrer Brasil afora contra o Marco Temporal. 

Você citou a MP 1154, que esvazia as atribuições dos ministérios dos povos indígenas e do meio ambiente, que também foi aprovada no Congresso. Apesar do Ministério da Justiça ser comandado por um progressista como o ministro Flávio Dino, qual é o tamanho do impacto das demarcações, por exemplo, deixarem de acontecer dentro do ministério dos Povos Indígenas?
 
Foi um impacto muito grande, principalmente para nós, do movimento indígena, que participamos ativamente da transição do governo, ajudamos a elaborar toda a proposta do ministério dos Povos Indígenas, trazendo uma das fases do processo demarcatório das terras indígenas para a responsabilidade do Ministério.

Fizemos isso por entender que para falar sobre povos indígenas e entender sobre povos indígenas, têm que ser os próprios povos. A fase da portaria declaratória, que antes era no Ministério da Justiça, nós trouxemos com uma prerrogativa e uma atribuição do Ministério dos Povos Indígenas, para que o ministério fizesse toda a análise das terras indígenas que estão por demarcar.

Agora o rito, na verdade, continua como era antigamente. Então, a prerrogativa do início do processo de demarcação de terras indígenas continua com a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), a criação do GT para estudo, feito com todo o rigor da lei, com toda a cautela, com toda técnica necessária para identificar uma terra indígena.

A portaria declaratória, que é uma das fases, estando no Ministério dos Povos Indígenas, ajudaria esses processos a avançarem. Era uma inovação para a legislação brasileira, para o processo demarcatório.

Com o processo retornando para o Ministério da Justiça, mesmo tendo o ministro Flávio Dino, um grande e forte aliado dos povos indígenas e da ministra Sonia [Guajajara], a gente entende que lá na frente pode ser um problema. Hoje nós temos um cenário muito mais positivo, mas lá na frente nós não sabemos. 

A gente viveu isso nos últimos quatro, seis anos, de paralisação total da demarcação de terras indígenas por conta da ideologia política do governante anterior e seus ministros, que entendiam que demarcar um milímetro de terra indígena era atraso para o país.

Um outro tema que tem dividido, inclusive, setores do governo federal é a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Se o Ibama acabar cedendo a esse projeto, já que há muita pressão sobre o órgão nesse momento, qual é o impacto dessa exploração para as populações locais e também para o meio ambiente? 

É quase incabível um governo que, em pleno século 21, com toda a responsabilidade ambiental que tem, com todo o discurso ambiental que tem, trabalhar por um projeto de exploração de lotes de petróleo na Amazônia brasileira.

Isso veio avançando ao longo desses anos e se concretizou agora. É um projeto que, inclusive, é ali na minha região, próximo ao município de Oiapoque, no Amapá. É onde estão os povos indígenas Karipuna, Galibi Marworno, Kali’na e Palikur, que reivindicam, na verdade, um melhor estudo, uma melhor avaliação.

O próprio Ibama, como toda a sociedade viu, negou o parecer em relação ao projeto, por entender - e é bom reforçar que não foi o presidente do Ibama sozinho, não foi a ministra do Meio Ambiente sozinha, que teve um parecer técnico detalhado, por 10 pessoas, técnicas do órgão, que a gente parabeniza muito pela serenidade - que, de fato, o projeto ele está cheio de brechas e lacunas que precisam ser sanadas e apresentadas para o governo, para a sociedade brasileira e para os povos indígenas da região. 

Nós estamos sendo contra a forma como está sendo conduzido, os povos do Oiapoque, inclusive, já manifestaram que não são contra o progresso. Aquelas terras indígenas são impactadas por empreendimentos desde a década de 1970, na abertura da BR-156, passagens de linhas de transmissão, a construção de pequenas centrais hidrelétricas, linhas de fibra ótica, enfim.

[Os indígenas da região] já estão sentindo na pele agora, ainda na fase de estudo, de prospecção, os impactos. A movimentação que cresceu gigantesca ali na região, o trânsito de aeronaves, helicópteros e aviões passando muito baixo por cima das terras indígenas, o trânsito nos rios que dão acesso também às terras indígenas aumentaram o fluxo.

O que a gente está pedindo, na verdade, é que o governo federal, o Ibama, a Funai, o Ministério dos Povos Indígenas, o Ministério do Meio Ambiente, todos os órgãos necessários, que se envolvam nesse processo, trabalhem em um estudo detalhado e qualificado tecnicamente, que aponte, de fato, os impactos. Não apenas traga os benefícios desse projeto.

A gente viveu, não faz tanto tempo assim, em 2019, aquela grande catástrofe na costa da região Nordeste, os vestígios de óleo daquele acidente. O óleo foi encontrado depois de um tempo ainda na região sul. Então, olha a distância. Agora, dizer que não vai ser afetado, que não vai ter impacto na região marítima da Foz do Amazonas, onde estão as terras indígenas e o Parque Nacional do Cabo Orange, não dá.

Essa região toda concentra uma biodiversidade gigantesca, não só terrestre, não só fauna e flora, mas marina também: peixes boi, tartarugas marinhas. Então, é importante que o estudo seja feito de maneira qualificada e detalhada, e que traga, de fato, os verdadeiros impactos que podem ocorrer nesse projeto.
 
Você comentou sobre o impacto nas terras indígenas apenas com a prospecção, e lembrei aqui da questão do garimpo nas terras indígenas. É uma batalha que teve grande avanço após a repercussão do caso nas terras Yanomami, mas ainda há muito o que fazer.  Há um plano de trabalho acordado com o governo federal para impedir o garimpo em terras indígenas e fazer o mapeamento de todas as regiões?
 
É uma questão que a gente vem batendo muito forte, de longa data. Cobramos muito o governo atual para trabalhar um plano nesse sentido. A APIB mesmo, lá atrás, entrou no Supremo com a ADPF 709, que o governo anterior não cumpriu nada, ou quase nada determinado pelo Supremo em relação às medidas necessárias contra o avanço da covid nas terras indígenas, mas que também traz uma proteção para esses territórios. 

Agora, no governo atual, continuamos cobrando para que a ADPF seja cumprida e que dê toda a segurança para os indígenas. Isso foi demonstrado agora com toda a ação feita na terra indígena Yanomami, mas a gente precisa avançar.

A gente precisa construir, de fato, esse plano para expandir para outras terras indígenas. A gente sabe da dificuldade do governo, trabalhando ainda com orçamento passado, com estrutura de pessoas ínfimas, o próprio Ibama com bastante dificuldade de pessoal para a própria operação na terra Yanomami, um quantitativo de pessoas, de fiscais, da Polícia Federal, muito pequenos para garantir a efetividade do plano de retirada dos garimpeiros.

Já surtiu algum efeito, deu uma travada, mas o garimpo continua na terra Yanomami, é importante ressaltar isso. Temos relatos recentes de que os garimpeiros que saíram da terra Yanomami estão procurando outras terras indígenas próximas da região. Já sabemos de invasões na terra Raposa Serra do Sol, na região de São Gabriel da Cachoeira também, no Amazonas. 

Se a gente for pensar em termos de proporcionalidade, a terra indígena Kayapó, no Pará, é uma terra que está sendo devastada, totalmente impactada pelo garimpo na região. A terra indígena Munduruku, o Vale do Javari, região com a maior concentração de povos isolados de todo o mundo. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho