No Rastro das Lutas

No Rastro das Lutas: ecumenismo, há décadas, na defesa dos direitos humanos e democracia

Movimento que reúne diferentes confissões religiosas tem longo histórico de defesa de direitos

Ouça o áudio:

A relação do movimento ecumênico com a defesa dos direitos humanos é antiga, no Brasil e no mundo - Shutterstock

A relação do movimento ecumênico com a defesa dos direitos humanos é antiga, no Brasil e no mundo, como conta Walter Altmann, teólogo e pastor luterano, que ao longo da sua vida pastoral já exerceu cargos como presidente do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e moderador do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), além de membro do Conselho da Federação Luterana Mundial (FLM) e presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil.

Este décimo episódio da série No Rastro das Lutas: Movimentos populares abrindo caminhos para a democracia e direitos no Brasil, conta um pouco sobre o pouco do papel do ecumenismo nessa longa caminhada pela construção democrática e fortalecimento dos direitos humanos no país. Esta produção é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), que completa 50 anos de atuação em 2023.  

“O movimento ecumênico abraçou decididamente a causa dos direitos humanos. O principal instrumento no mundo do movimento ecumênico é o Conselho Mundial de Igrejas, com sede em Genebra, na Suíça. Nos anos 1970 e 1980, o CMI desenvolveu o importante programa de combate ao racismo. Nele apoiou, por exemplo, movimentos de libertação na África do Sul e na então Rodésia, hoje, Zimbábue”, lembra.

Ele conta ainda que essa atuação recebeu o reconhecimento e gratidão, inclusive, de Nelson Mandela. “Outro exemplo marcante foi a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, que reuniu multidões em demonstrações massivas por todo o país sob a liderança de Martin Luther King, um pastor batista. Com esse movimento foi possível superar, nos Estados Unidos, as legislações e as práticas de segregação racial primeiro que oprimiam a população negra”, acrescenta.

O Conselho Mundial de Igrejas também desenvolveu um vasto programa de apoio às organizações sociais que se empenhavam pelos direitos humanos na América Latina durante as ditaduras militares, como conta Walter Altmann. Esse programa apoiou, por exemplo, a organização das Mães e Avós da Praça de Maio, na Argentina, e, com o apoio do bispo Helmut Franz, auxiliou muitos refugiados quando do golpe militar no Chile.

“Um dos exilados mais conhecidos que recebeu apoio decidido do Conselho Mundial de Igrejas foi o brasileiro Paulo Freire, que atuou no próprio CMI, coordenando projetos de alfabetização em países da África, como em Cabo Verde e também na América Central, como na Nicarágua”, conta.


Walter Altmann, teólogo e pastor luterano, presidente do CLAI e moderador do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) / CESEEP


Ecumenismo no Brasil


Ainda de acordo com Altmann, no Brasil, o projeto mais significativo patrocinado pelo CMI foi o Brasil Nunca Mais, abrigado na Arquidiocese Católica de São Paulo, sob a liderança do arcebispo cardeal dom Paulo Evaristo Arns e coordenado pelo pastor presbitaiano Jayme Wright.

“Durante 5 anos, um grupo abnegado de advogados, fazendo uso de suas prerrogativas, consultou os arquivos constantes no Supremo Tribunal Militar dos processos movidos contra presos políticos. Ao todo, 850 mil páginas foram consultadas. Ao final do expediente, os advogados recebiam autorização para levar os documentos para consulta ainda à noite. Contudo, então copiavam esses documentos para a devolução no dia seguinte”, diz.

Esses documentos contendo relatos das torturas sofridas durante a ditadura brasileira resultaram em 12 extensos volumes atualmente na biblioteca do CMI. Em 2011, enquanto ocupava a função de moderador do CMI, Walter Altmann trouxe cópias desses documentos e as entregou ao Ministério Público Federal (MPF) para que fizesse a digitalização do material, permitindo assim a guarda dos documentos e posteriores pesquisas.

No final da década de 70, a igreja católica e várias igrejas protestantes de cunho ecumênico também defenderam a anistia que possibilitou a volta dos numerosos exilados ao Brasil. E, na década de 80, participaram das campanhas pelas Diretas Já e pela constituinte. A reverenda Magda Guedes, bispa episcopal anglicana, atual presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), conta que havia então dois grupos muito distintos entre as confissões protestantes.

“É muito importante considerarmos que dois tipos de grupos cristãos incidiram na Constituição de 1988. Um foi o movimento ecumênico, muito atrelado aos movimentos sociais, especialmente em favor da reforma agrária e pela anistia das pessoas vítimas das torturas durante o período militar. E o outro movimento foi o que resultou, posteriormente, no que se conhece hoje como a frente parlamentar evangélica”, explica.


Magda Guedes, bispa episcopal anglicana, atual presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) / Diocese Anglicana do Paraná


Ela acrescenta que esse segundo grupo se articulou no período constituinte, a fim de garantir os mesmos direitos e privilégios que historicamente foram concedidos para a igreja católica romana, tais como isenção de impostos e acesso a recursos públicos. E, mais recentemente, ocorre o enfraquecimento do movimento ecumênico.

“E assim, se fortalece o segundo grupo, que podemos considerar bastante vitorioso em suas reivindicações, pois obtiveram concessões públicas de meios de comunicação, especialmente no rádio, na televisão e são disputados por partidos políticos, tanto à esquerda quanto à direita, por causa do número de votos que conseguem atualmente”, acrescenta a reverenda Magda Gudes.

Direitos humanos e Evangelho


Para Magda Guedes, o movimento ecumênico tem pautado suas ações em defesa dos direitos humanos numa perspectiva evangélica da prática do bem e da justiça. “Historicamente, setores de igrejas engajados no movimento ecumênico e de direitos humanos, alicerçam sua prática na diaconia e na pastoral na respectiva prática do bem e da justiça. E é importante também conceituar, a partir do evangelho, o que é o bem e o que é justiça. O que chama a atenção nesses textos é que o bem, para tornar-se justiça, necessariamente exige transformações das estruturas das desigualdades”, explica.

Em seu livro Lutero e Libertação – Uma leitura de Lutero em perspectiva latino-americana, Walter Altmann salienta também a importância dos pobres na teologia de Lutero. “Lutero também se manifestou a favor da educação para todas as crianças, meninos e meninas, algo inusitado na época, sem distinção. O início da educação universal. E denunciou veementemente práticas comerciais e de usura que exploravam a necessidade dos pobres. Isso continua sendo relevante para os dias de hoje”, diz Altmann.

Ele acrescenta que esta é uma preocupação presente nos preceitos cristãos. “Se cada ser humano é uma criatura, a imagem de Deus, cada ser humano tem dignidade e merece viver de forma digna. Portanto, a fome, a miséria, são inaceitáveis e faz parte do compromisso da igreja de amor ao próximo, dedicar-se a elas e defendê-las em suas necessidades”, afirma.

A série de reportagens e podcasts No Rastro das Luta é mais uma iniciativa que se relaciona com as ações dos 50 anos da CESE, trazendo uma abordagem voltada para sensibilização da sociedade acerca da contribuição social, cultural, econômica e política dos movimentos sociais no país. E conta com apoio do programa Doar para Transformar.

Edição: Alfredo Portugal