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'Única vez que me senti discriminada como mulher cientista foi nos EUA', diz geneticista brasileira Mayana Zatz

Multipremiada internacionalmente, geneticista diz que ciência brasileira não exclui mulheres, mas precisa de mais apoio

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Em 2011, Mayana Zatz recebeu o prêmio de Doutor Honoris Causa pela Universidad Nacional Autónoma de México - Yuri Corteza/AFP

Todos os avanços tecnológicos e apoios governamentais que os Estados Unidos têm para a ciência não impressionaram tanto a geneticista brasileira Mayana Zatz quanto o preconceito que sofreu quando realizou seu pós-doutorado no país norte-americano.

"A única vez na minha vida que eu me senti discriminada como mulher cientista foi quando eu fiz meu pós-doutorado nos Estados Unidos", disse em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (6).

Zatz é atualmente uma das responsáveis pelo laboratório do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), onde realiza pesquisas no campo de células-tronco. No início dos anos 2000 ela foi uma das personalidades mais relevantes no debate sobre os estudos a respeito de células tronco no Brasil. 

Na mesma época, ela exerceu o cargo de pró-reitora de pesquisa da USP de 2005 a 2009. 

Membra da Academia Brasileira de Ciência há quase 30 anos, Zatz cobra mais investimentos na ciência, embora comemore que o negacionismo científico endossado durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) esteja indo embora.

"Sem dúvida melhorou muito, mas ainda há muito para melhorar. Como eu falei, a gente precisa de muito mais investimentos".

Confira a entrevista na íntegra.

Você já há décadas estuda genética, é reconhecida internacionalmente, ganhou prêmios nacionais e internacionais também. A senhora sente que existe ainda um mundo para desvendar dentro da genética, doutora? 

Com certeza, porque a cada pergunta que você responde é um leque de novas perguntas. E é isso que nos move, são as perguntas. Isso que move os cientistas, as questões, as dúvidas. Então temos muito a descobrir.

Apesar de que eu posso afirmar que nos últimos 20 anos, 30 anos, nós tivemos várias revoluções na genética. 

Primeira clonagem da Ovelha Dolly, onde se mostrou pela primeira vez que a partir de uma célula já diferenciada você podia fazer um ser completo. 

O projeto genoma humano, que hoje permite você sequenciar um genoma em algumas horas a um custo cada vez mais acessível — lembrando que o primeiro genoma humano levou 13 anos para ser completado, a custo de 3 bilhões de dólares. 

Depois nós tivemos as células IPS, que foi uma outra descoberta que deu o Prêmio Nobel e Shinya Yamanaka, e que mostrou hoje que se eu coletar teu sangue, eu consigo reprogramar as células no laboratório e fazer qualquer linhagem celular. Eu posso fazer isso com célula muscular, célula nervosa, célula sanguínea, enfim, qualquer célula. 

E, finalmente, a descoberta de edição de genes, da técnica que a gente chama de CRISPR, que permite hoje editar genes, alterar genes. E isso está fazendo uma revolução na medicina e nas pesquisas científicas.

Doutora, essas descobertas que você citou me fizeram refletir sobre a ética da genética. É uma questão que parece cada mais sensível para ser discutida. Como vocês de dentro da ciência veem isso? O que dá mais trabalho: realizar os estudos ou fazer os debates éticos das descobertas? 

Então, o que nos move são as perguntas. A diferença entre o cientista e o não cientista é que a gente tem uma curiosidade mórbida. A gente não se contenta em observar, a gente quer entender mais, a gente quer saber o mecanismo, a gente quer saber o que a gente pode fazer a respeito, principalmente, no meu caso, que trabalho com doenças genéticas. A gente gostaria de chegar a um tratamento.

As questões éticas vêm a rebote. Então, primeiro a gente descobre o fato científico, e depois vem as questões éticas, que também são muito importantes.

Por exemplo, uma questão ética que nós estamos enfrentando agora, a gente chama de achados incidentais. Eu tenho uma pessoa que tem uma determinada doença, uma determinada suspeita, eu faço o estudo genômico dessa pessoa e descubro uma mutação que não tem nada a ver com o problema que ela tem. Vou te dar um exemplo prático.

Pega um menino de 8 anos que tem uma doença muscular e eu descubro que ele tem uma mutação responsável com uma forma hereditária de câncer de mama. Eu devo contar ou não devo contar?

Então esse é o exemplo que a gente enfrenta o tempo todo. Casais que querem saber o risco de ter uma criança com uma determinada doença. E aí você descobre que o pai não é o pai. Conta ou não conta?

Então, nós temos que lidar o tempo todo com essas questões éticas, mas não tem regra. Cada caso tem que ser discutido diferentemente, separadamente. E a gente chegar a um consenso do que que vai ser menos prejudicial. 

A senhora já comentou algumas vezes como uma limitação da ciência mundial está no fato de os estudos genômicos estarem concentrados, historicamente, em pessoas brancas de descendência europeia. Podemos dizer que o racismo é também um impeditivo do avanço da ciência?

Sim, é uma outra questão muito importante. Em 2008, nós chegamos à conclusão que a gente precisava ter um banco de dados da nossa população, justamente porque a nossa população é totalmente miscigenada. 

Dez anos depois saiu um artigo internacional chegando à conclusão que se precisaria ter bancos de dados de populações miscigenadas, porque nos bancos internacionais só tinha a população europeia. 

De fato, a gente estudou mais de mil pessoas da nossa população e achamos dois milhões variantes que não estavam descritas nos bancos internacionais. Variantes novas, que não tem nada a ver com doença. São variações que fazem uma pessoa ser diferente da outra.

E esses estudos têm avançado?

Sim, a gente está avançando bastante, mas ainda falta muito investimento na ciência. 

Nós temos alguns centros de excelência. São Paulo nesse sentido é muito privilegiado porque a gente tem a Fapesp, que é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e que financia todos os bons projetos. 

Mas, no resto do Brasil, a situação é muito diferente. Precisamos ter muito mais investimento em ciência do que tem hoje. E, principalmente, o que nós estamos observando hoje é uma fuga de cérebros, de jovens cientistas que vão embora para o exterior porque não veem possibilidade aqui de ter uma carreira a longo prazo. 

Se o governo não abrir os olhos para isso, se não der salários dignos para os cientistas, a gente vai ter cada vez mais fuga de cérebros e é uma coisa irreversível. 

Doutora, passamos por quatro anos em que o negacionismo científico esteve na base do governo, era pronunciado pelo presidente, negando vacina e outros estudos científicos. Você acha que esse fantasma já foi embora?

Sem dúvida melhorou muito, mas ainda há muito para melhorar. Como eu falei, a gente precisa de muito mais investimentos. Uma outra barreira que os cientistas brasileiros têm, e que eu tenho brigado há muito tempo para a gente tentar mudar, é a dificuldade para importar reagentes para a pesquisa.

Enquanto nos Estados Unidos, se eu penso numa experiência científica, numa experiência laboratorial, no dia seguinte eu tenho todos os reagentes para poder testar a minha ideia, aqui você leva meses para conseguir importar os reagentes que precisa para a pesquisa. Às vezes você perde isso na alfândega, você tem que ter intermediários para liberar.

Isso é uma coisa que eu sempre me pergunto: por que a gente não poderia importar reagentes como se importam livros? Você vai na internet e diz eu quero tal e tal livro e você recebe o livro em casa. A gente gostaria que isso acontecesse com as nossas pesquisas e que fosse entregue nas universidades.

Nós temos verbas alocadas para importação, nós somos registrados no CNPQ como cientistas, então não haveria meio nenhum da gente fazer coisas ilícitas. Eu sempre digo, o governo teria que dar mais um voto de confiança para os seus cientistas. 

Doutora, em outras entrevistas suas, eu já ouvi você trazendo relatos de que, por exemplo, nunca sentiu muito preconceito por ser uma mulher na ciência ao longo da sua carreira. Você sente que isso foi algo particular com você? Como você vê a situação de suas colegas mais jovens, de meninas que entram na ciência hoje?

Na ciência brasileira as mulheres não são discriminadas como cientistas. Existem as mesmas oportunidades, os mesmos salários e a gente ainda conseguiu ter licença maternidade

Então as mulheres, professoras ou alunas de mestrado e doutorado que estão fazendo uma tese têm direito a ter também seis meses de licença de maternidade. 

O que é muito diferente dos Estados Unidos, onde os salários são negociados, e se você for mulher o salário é menor, o que não acontece aqui. Os salários são iguais [aqui]. 

E também lá não existe licença à maternidade. Então a única vez na minha vida que eu me senti discriminada como mulher cientista foi quando eu fiz meu pós-doutorado nos Estados Unidos.

Hoje a gente inclusive tem mais meninas, mais mulheres fazendo ciência com bolsas nas áreas biológicas.

Nas áreas de ciências exatas, na computação, existem mais homens ou que mulheres. Mas a minha questão é, será que isso é por causa de uma discriminação ou é o menor interesse das meninas nessa área?

A minha percepção é que as meninas têm mais interesse pelas áreas biológicas do que pelas áreas exatas, mas não é por causa de discriminação, com certeza não. 

Outro dia, o diretor, o presidente da Fapesp que é o professor [Marco Antonio] Zago, me disse, se a gente for distribuir o mesmo número de bolsas para meninos e meninas, eu vou ter que tirar bolsas das meninas, porque a gente tem muito mais meninas com bolsas para mestrado, doutorado do que meninos. 

Então eu acho que a oportunidade é igual para todos. A gente não pode se queixar realmente de nenhum tipo de discriminação no Brasil. 

Doutora, e ao que a senhora atribui esse respeito que o Brasil consegue mostrar à presença das mulheres na ciência? Você acha que é resultado da luta das mulheres que conseguiram impor e se legitimar?

Eu acho que sim. Por um lado, a luta das mulheres, mas por outro lado, eu acho que os legisladores perceberam que as mulheres têm uma capacidade, vamos dizer, uma inteligência tão boa quanto dos homens. 

Você sabe que já foi expulso de Harvard um reitor que dizia que os homens são mais inteligentes que as mulheres? A gente pensa diferente. As mulheres pensam de uma maneira diferente que os homens. Os homens são mais focados e as mulheres conseguem pensar em mais coisas ao mesmo tempo, talvez com menos foco. E isso é fantástico porque a gente se complementa.

Então, não tem um mais inteligente do corpo. Nós temos inteligências diferentes. E eu acho que quem percebeu isso, e quem percebe isso, não vai poder discriminar. 

Aliás, essas duas invenções de edição gênica, de poder editar genes, deram Premio Nobel a duas mulheres em 2020: a Jennifer Doudna e a Emmanuel Charpentier. 

Então eu acho que se as mulheres no mundo tiverem tanto espaço como os homens, a gente vai poder realmente contribuir muito. 

Que caminhos precisamos seguir para aproximar mais a ciência da população e atrair as pessoas a se aventurarem na área?

Eu acho que isso aí é o papel da mídia. Se ela der oportunidade para os cientistas falarem mais com a população... A gente tem essa preocupação de traduzir a ciência numa linguagem palatável. 

Infelizmente a mídia tem muito mais interesse em dar más notícias notícias do que às boas notícias e mostrar o que a gente pode fazer com a ciência.

Então eu acho que esse é o papel dos jornalistas realmente de dizer, "olha, não temos só mais notícias, a ciência está avançando, pode ajudar a população".


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Edição: Matheus Alves de Almeida