Luta das Mulheres

No 8 de março, trajetória de Nalu Faria segue viva na construção de um feminismo popular

Militante da Marcha de Mulheres, Sônia Coelho fala ao Bem Viver sobre memória, aborto e enfrentamento à extrema direita

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Nalu Faria participou de algumas das principais organizações feministas brasileiras
Nalu Faria participou de algumas das principais organizações feministas brasileiras - Foto: Reproducción

O Dia Internacional de Luta das Mulheres teve início com dezenas de ações em todo o país, mobilizando milhares de mulheres nas mais diversas pautas. Direito à terra, preservação ambiental, alimentação saudável, a defesa da democracia e a não anistia aos golpistas de 8 de janeiro, o fim do massacre de Israel em Gaza: pautas gerais, mas que têm nas mulheres um forte protagonismo.

Existem, no entanto, temas que são mais caros nessa data, como a garantia do direito ao aborto, o fim das violências contra as mulheres, igualdade salarial, reconhecimento das tarefas domésticas e cuidado com os filhos como trabalho. E também a memória de lutadoras, como Nalu Faria, militante histórica do movimento feminista, coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), que morreu em 2023.

Em entrevista ao programa Bem Viver, a militante da Marcha Mundial de Mulheres Sônia Coelho relembra a trajetória de Nalu com carinho e como inspiração para a continuidade da luta. "Para nós, é uma tristeza e uma responsabilidade de manter a Marcha Mundial, a SOF, sempre viva organização feminista, dentro da luta que a Nalu sempre empreendeu. Ela sempre pensava para o futuro da marcha, da SOF, de estar cada vez mais engajada e construindo o feminismo popular", afirma.

Sonia também tem a vida enraizada na luta. Ainda jovem foi operária da indústria química e atuou no sindicato da categoria. Formou-se em Serviço Social e passou a trabalhar em bairros da zona sul de São Paulo, também atuando no Sindicato das Assistentes Sociais. Nos anos 1980, passa a atuar em movimentos populares e na construção do PT. Tamnbém nessa época passou a integrar a Sempreviva Organização Feminista e o movimento de mulheres. E em 2000, participou da criação da Marcha Mundial das Mulheres, junto com Nalu.

Confira a entrevista completa:  

Esse 8 de março é o primeiro sem Nalu Faria. Como vocês estão indo para a rua, como vocês estão se mobilizando, desde antes, para fazer um 8 de março sem essa referência?

Primeiro que assim: é uma dor inimaginável para a gente, que viveu e conviveu com a Nalu no movimento feminista desde os anos 80. E o 8 de março era uma data que a Nalu se envolvia muito, que escrevia, que ajudava, como muitas de nós fazemos, ela fazia muito. Desde pensar texto, elaborar, de ir no bairro, fazer debate, fazer debates internacionais. De repente ir lá na SOF e ter que ajudar a pintar uma faixa, porque nas nossas coisas é tudo assim, ao mesmo tempo.

Para nós, é uma tristeza e uma responsabilidade de manter a Marcha Mundial, a SOF, sempre viva organização feminista, dentro da luta que a Nalu sempre empreendeu e que ela sempre pensava para o futuro da marcha, da SOF, de estar cada vez mais engajada e construindo o feminismo popular.

Essa é sempre a nossa preocupação. O que é que Nalu estaria fazendo agora? O que a Nalu estaria dizendo sobre isso? Porque ela tinha essa visão muito crítica. Ela tinha uma capacidade de ver o futuro, uma capacidade muito grande de leitura da conjuntura, de leitura de percepção para o futuro. Então, é todo um desafio para nós.

Mas nós estamos aí, com toda essa falta dela, mas ela está presente em nossos corações. E com certeza esse vai ser um 8 de março de muita luta e que nós vamos lembrar muito dela. E vamos estar na rua lutando como ela gostaria de estar.

Estamos entrando no segundo ano de governo Lula, que é uma gestão difícil e complicada, porque vem depois desses anos Bolsonaro. A gente tem aí algumas questões de reconstrução, mas ao mesmo tempo já é um momento de cobrar. Qual é o tom que as mulheres vão levar para as ruas nesse 8 de março?

Tem vários elementos para esse 8 de março, que nós estamos trabalhando. Começando aí pelo segundo ano do governo Lula. Ainda a extrema direita está muito organizada, andou mostrando força aí pela rua. O 8 de março é o primeiro grande ato de massa logo depois daquela manifestação do Bolsonaro.

Nós estamos pedindo punição para os golpistas, punição para o Bolsonaro e trazendo um elemento da democracia, que a gente sabe que só o governo Lula estando lá a questão da democracia não está totalmente resolvida. E essa democracia ainda é muito deficiente, pensando a questão das desigualdades em nossa sociedade. E pensando nessa questão de como a extrema direita vem o tempo todo tentar destruir o pouco de democracia que se tem.

Então essa é uma pauta que nós temos de defesa da democracia, de não anistia, a reivindicação de punir todos os golpistas.

A questão da legalização do aborto é uma questão que vai com muita força também para a rua, porque a semana passada o Ministério da Saúde fez uma nota técnica para regulamentar e orientar os serviços de aborto legal no Brasil. O aborto legal a gente está dizendo daquelas situações que estão previstas em lei: a questão das vítimas de violência, a questão de anencefalia, a questão do risco de vida da mulher.

E essa nota técnica foi colocada pelo Ministério da Saúde, uma nota técnica muito boa, baseada na ciência, baseada na lei. A extrema direita fez uma grande pressão contra o governo, contra o Ministério da Saúde. E imediatamente a ministra suspendeu essa nota técnica. Nós estamos reivindicando e pressionando o governo para que ele retome essa nota técnica, porque é obrigação do governo orientar, melhorar os serviços. É obrigação.

Tudo que foi feito ali é dentro da lei. uma lei que é inclusive de 1940. Não é nada novo. E mesmo assim, a extrema direita se sente no direito de tentar impedir uma coisa que é de 1940. E o governo, infelizmente, suspendeu essa nota e nós vamos trazer esse debate.

Quando a gente vai para a rua não é só o debate do aborto legal, mas também o debate da legalização do aborto, que é necessário no Brasil, porque nós ainda temos muitas mulheres jovens, negras, que são a maioria que morrem ou ficam com sequelas pelo aborto clandestino. E, na questão do aborto legal, uma coisa muito triste é que a maioria das pessoas que recorrem a esse aborto são crianças e adolescentes que são estupradas. E a elas é negado o direito.

Muitas vezes essas meninas podem morrer por falta desse serviço ou ter que assumir uma gravidez aos 9, 10, 11 anos de idade e acabar com a sua infância. É uma questão de direito das meninas, das mulheres, das pessoas que gestam, de direitos humanos e que o governo tem que regulamentar esses serviços.

Aí uma outra pauta é a da violência. Que é sempre uma pauta muito colocada pelo movimento de mulheres, em todos os estados, pela questão mesmo do número muito grande de feminicídios, de transfeminicídio, que ainda é muito grande na nossa sociedade. Esse é um tema recorrente do 8 de março.

E outro tema que está em destaque também é a questão da Palestina, porque o 8 de março, por ser o Dia Internacional de Luta das Mulheres, a gente sempre lembra também essa solidariedade internacional. E, nesse ano, a gente não pode deixar de pensar na Palestina, de pensar que milhares de mulheres da Palestina, crianças, pessoas da classe trabalhadora, estão sendo massacradas, que está vendo um verdadeiro genocídio. Pessoas morrendo de fome, crianças morrendo desnutridas. Não tem como o 8 de março não falar sobre isso. É fundamental denunciar o genocídio na Palestina.

Você comentou sobre essa nota técnica que foi despublicada pelo Ministério da Saúde. A gente acompanhou que a Marcha Mundial das Mulheres fez, inclusive, uma nota de repúdio a esse recuo do ministério. A partir dessa mobilização, há alguma previsão de que o ministério volte a publicar a nota técnica sobre o aborto legal?

Nós estamos pressionando bastante, mas ainda não tivemos nenhuma resposta. Nós mandamos carta para o Ministério da Saúde, mandamos carta para a Secretaria-Geral da Presidência, para o Ministério das Mulheres, para a própria secretaria que elaborou essa nota, e não tivemos resposta.

A gente sabe que, por dentro do Ministério, tem pessoas absolutamente comprometidas e fazendo essa luta e tentando manter a nota, como a gente sabe que tem pessoas bolsonaristas, da extrema direita, que também pressionam pelo outro lado. É um absurdo do absurdo, algo que está em lei, que você está fazendo somente o que a lei manda, e mesmo a assim a extrema direita conseguir influenciar o governo e não permitir que esses serviços funcionem.

Além disso, não é só essa nota técnica. A gente tem visto, por exemplo, em São Paulo, o prefeito [Ricardo Nunes (MDB)] fechou o serviço do Hospital Cachoeirinha, que era uma referência até nacional de como fazer o aborto legal em situação de gestação um pouco mais avançada. Tinha todo um protocolo, toda uma prática, uma elaboração de como trabalhar para resguardar a saúde e a vida das mulheres nesses casos, que são os casos de violência, principalmente crianças.

Que criança, quando se descobre que ela está grávida, às vezes já é uma gestação avançada, porque a criança, tem criança de 9, 10 anos, 11 anos que engravidam, produto de estupro, e ela não sabe que está grávida. Então, vai descobrir quando ela começa a se sentir mal, vai para o hospital, daí se descobre que ela está gestante e que foi produto de um estupro. Aí se recorre, em geral, com uma gravidez já mais avançada. São essas crianças, principalmente, que estão sendo lesadas no seu direito.

Nesta semana a França inseriu o direito ao aborto em sua constituição. Como vocês têm olhado para esse movimento francês? É uma referência, algo a ser alcançado? É um modelo para ser reproduzido no Brasil ou é uma experiência interessante, mas não se encaixa na nossa realidade? 

Bom, primeiro que foi muito bom, foi maravilhoso, vai ser sempre uma referência, a França sempre nos dá referência. E foi uma coisa muito importante, porque o que a França fez, o que o movimento e os próprios setores de esquerda fizeram? Eles perceberam que a extrema direita estava se organizando na França para impedir às mulheres o direito ao aborto.

Eles olharam a realidade dos Estados Unidos, que nos Estados Unidos tem uma lei, mas como a questão do aborto não está na constituição, cada estado lá nos Estados Unidos agora está fazendo a sua lei própria. Está barrando o direito ao aborto. E eles pretendem, no futuro, colocar na constituição geral o não direito ao aborto, pressionar a Suprema Corte para cair esse direito.

A França fez exatamente ao contrário dos Estados Unidos. Colocou justamente na constituição, para conseguir que esse direito permaneça para todas as mulheres. Foi uma conquista muito grande lá na França e bastante preventiva dos ataques da extrema direita.

Aqui no Brasil e na América Latina, o que a extrema direita tem feito, também, é justamente tentado colocar na constituição. Se você olhar no Brasil, você vai ver que tem vários projetos no Congresso. E de vez em quando eles aparecem com um projeto aí para mudar nossa constituição, para colocar na nossa constituição que a vida inicia desde a concepção ou colocar direitos para mudar o que eles chamam de nascituro.   

Porque a nossa constituição fala que a vida inicia ao nascer. No Brasil não tem essa questão aí de quando inicia a vida. Eles querem colocar isso na constituição. Porque se eles colocam na constituição, isso vai barrar qualquer serviço, mesmo o aborto legal, ele não pode funcionar se você mexer na constituição dessa forma. Essa tem sido ofensiva constante na América Latina, como eles fizeram em El Salvador, na Nicarágua. No Chile era assim também, o Chile conseguiu mexer.   

Aliás, as mulheres do Chile tentaram, nessa elaboração da nova constituição chilena, colocar esse direito e não conseguiram, porque foi rechaçada, no plebiscito, a Constituição. Mas é uma disputa que está sendo feita na América Latina e no mundo. Tanto para cercear, como para garantir esse direito. 

Edição: Nicolau Soares