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Wander Piroli, o homem da Lagoinha

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Piroli na Redação do Última Hora, em meados dos anos 1960
Piroli na Redação do Última Hora, em meados dos anos 1960 - Foto: Acervo Conceito Editorial
Piroli era chamado de comunista, boêmio e cachaceiro pelos patrões

O jornalista e escritor Wander Piroli nasceu e morreu em Belo Horizonte. Viveu 75 anos, entre 1931 e 2006. Viveu bem, intensamente. Também escreveu bem, intensamente. Nos dois casos, a qualidade da existência e da obra têm medidas muito exatas e pessoais. Ele fez o que achava certo, com sua bússola moral e estética própria.

Não ficou rico, não se tornou uma estrela literária. Com sua origem no bairro operário da Lagoinha, também reduto de malandros e prostitutas, falava para sua gente. Sem se inclinar em momento algum para o poder dos barões da imprensa ou da cena intelectual, conquistou espaço no jornalismo e na literatura exatamente pela fidelidade às raízes. Ninguém era tão bom para fazer jornal e escrever histórias da vida real como ele na BH de seu tempo.

A biografia “Wander Piroli – Uma manada de búfalos dentro do peito”, escrita por Fabrício Marques e lançada recentemente pela Editora Contexto, é uma excelente porta de entrada na obra e na vida do escritor. Livro informado, escrito com cuidado e pesquisa, dosado na admiração, é um retrato de época, uma crônica dos bastidores da imprensa e um perfil vivo do personagem. De quebra, deixa boas perguntas sobre literatura e jornalismo. Sobre a vida. O que, acredito, deixaria Piroli satisfeito.

Comunista, boêmio e cachaceiro eram algumas das características que Piroli ouvia desdenhosamente dos patrões, que, nem por isso, deixavam de contratá-lo e confiar e ele o comando das redações. A burguesia é tacanha, mas não rasga dinheiro. O escritor passou por muitos jornais, algumas vezes por mais de um ao mesmo tempo. Foi editor do Binômio, redator-chefe da Última Hora, editor de O Sol, editor de polícia do Estado de Minas, editor do Suplemento Literário do Minas Gerais, editor do Jornal de Shopping e Jornal de Domingo, diretor do Diário de Minas e Hoje em Dia. Também nas rádios Inconfidência e Guarani, em  programas rurais de um homem urbano até a ponta dos bigodes.

Em todos os lugares em que trabalhou Piroli deixava suas marcas. Respeito à notícia, valorização da equipe - o que não o impedia de dar broncas e exigir texto e apuração -, criatividade para pautas, habilidade no desenho das páginas, talento para dar títulos, casca grossa para suportar pressões, ousadia e coragem para enfrentar tabus e censura. Durante a ditadura militar ganhou prêmios por denunciar tortura de presos comuns nas delegacias. Homem de imprensa sério, nem por isso deixava de criar um ambiente criativo e às vezes anárquico à sua volta.

Inovou na linguagem, na técnica e no visual. Mas a principal característica do jornalista foi o compromisso humano. Antes dos movimentos de reivindicação de espaço para minorias e marginalizados, Piroli já trazia para as páginas os interesses dos trabalhadores, pobres, negros, mulheres e homossexuais. As reportagens pautadas por ele precisavam ter o olhar das pessoas comuns. Fazia parte, como dizia, “da oposição chamada vida”.

Não foi um acaso seu interesse pela editoria de polícia, que fez escola no jornalismo mineiro. Homem culto, escritor premiado, nem por isso tinha fetiche com cadernos de cultura ou seções de política e economia, mais prestigiadas. Nos crimes estavam as histórias que precisavam ser contadas, sem se prender à praga dos boletins e declarações oficiais. “Todos os dias a miséria humana é jogada na nossa cara. Todos os dias”, dizia. Nada acontece por acaso, nem a graça, nem o crime. Piroli insistia em saber o porquê dos atos humanos. Por esse motivo, achava que a editoria de polícia era também a que melhor preparava o candidato a escritor.

E como escritor Wander Piroli também foi incomum. Seus contos brotavam do cotidiano. Enxutos, sem gordura. Reescrevia dezenas de vezes suas histórias. Por isso publicou pouco, mas conquistou prêmios nacionais e admiração escritores. Vendeu bem. Sua estreia com “A mãe e o filho da mãe” colocou o sarrafo no alto. Maduro e pessoal logo de cara. Com “Minha bela putana” deu voz às prostitutas e inovou na técnica, sem fazer alarde. Publicou crônicas sobre a Lagoinha e sobre pescaria, suas paixões.

Na literatura infantil, mudou o rumo da história com livros como “O menino e o pinto do menino” e “Os rios morrem de sede”, com a mesma linguagem direta e temas pouco comuns no universo literário canônico. Falava sobre morte, falta de dinheiro em casa, destruição do meio ambiente. São livros cheios de emoção, que trazem afeto, raiva e angústia. Os meninos de Piroli não eram anjos. Ele devia detestar anjos.

Wander Piroli jogava peladas descalço com os amigos, gostava de boemia, de pescarias, de escrever, fumar cigarros de palha, beber cachaça e fazer jornais com histórias bem contadas. Trabalhou duro para manter a família, às vezes em três turnos. Entrava e saía de jornais sem perder a dignidade e os companheiros. Foi fiel ao primeiro editor de seus livros, mesmo quando começou a ser cortejado por casas de prestígio. Levou sempre com ele os colegas de empreitadas para onde fosse.

No fim da vida, em razão de um AVC, foi perdendo o diálogo com as pessoas. Falava pouco, mas a vida interior se mantinha. Estava aprisionado no seu corpo. Nunca foi de reclamar. A imagem do homenzarrão que sentia o mundo e não podia mais expressá-lo talvez seja bem próxima da situação do jornalismo e da literatura em nossos dias. As coisas do mundo real acontecem e não são noticiadas. A vida se manifesta com suas dores e os escritores só enxergam o próprio umbigo.

Wander Piroli deixou uma obra e um testemunho. O que fazemos com isso é problema nosso. Pelo visto, estamos desprezando lições sábias, perdendo o prazer de jogar peladas, pescar com os filhos, cultivar amigos, beber sem culpa, defender os marginalizados, desafiar patrões e contar boas histórias.

Edição: Joana Tavares