Rio de Janeiro

CINEMA

Artigo | Quando a imagem testemunha

"Os números apontados no início do filme impressionam: 16 mil homicídios praticados por policiais em serviço desde 1997"

Rio de Janeiro (RJ) |
Auto de Resistência narra um tema atual sobre o cotidiano das mães que buscam justiça por seus filhos mortos pela polícia carioca
Auto de Resistência narra um tema atual sobre o cotidiano das mães que buscam justiça por seus filhos mortos pela polícia carioca - Cena de Auto de Resistência/IMS

Auto de Resistência de Natasha Neri e Lula Carvalho ficou poucas semanas em cartaz no Rio de Janeiro. O filme narra um tema atual sobre o cotidiano das mães que buscam justiça por seus filhos mortos pela polícia carioca. Do lado das famílias, percebe-se que os óbitos são de jovens, negros e moradores de favelas. Os números apontados no início do filme impressionam: 16 mil homicídios praticados por policiais em serviço desde 1997. Do outro lado, acusados que alegam matar em legítima defesa durante ação policial.

O longa metragem trata de alguns destes casos e optou mostrar apenas aqueles que tiveram investigação e que se constituíram em processo judicial. Esta escolha vai ao encontro a uma característica do cinema que entende que a força da imagem se dá a partir de um complicado quebra cabeça montado a partir de diversos pontos de vista sobre os fatos.

Sendo Auto de Resistência um documentário, os diretores poderiam lançar mão de uma montagem com depoimentos das partes envolvidas. Entretanto, eles preferiram uma narrativa menos fácil que abdica de narração e que se construiu com registros da rotina das famílias dos jovens assassinados, a mobilização das mães em várias frentes de luta, os depoimentos em juízo dos policiais acusados (mesmo se seus rostos nunca apareçam), as argumentações de advogados e promotores diante de juízes até a discussão sobre segurança pública na Assembléia Legislativa com deputados estaduais (como, por exemplo, Marcelo Freixo do PSOL ou Flávio Bolsonaro do PSL) e relato de José Mariano Beltrame, ex-secretário de segurança do estado do governo de Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão. Avista-se a presença emblemática de Marielle Franco em algumas poucas cenas do filme.

Durante dois anos, os diretores prepararam um exaustivo material que inclui tanto gravações em tribunal, delegacias, ações da militância de mulheres negras e outros espaços quanto imagens de arquivo. Algumas destas últimas surpreendem pela procedência, pelo teor e pelo uso inédito. Este artigo pretende justamente analisar estas imagens de segunda mão articuladas de forma dialógica no filme e que foram originadas pela polícia, pelas vítimas ou testemunhas dos crimes. Todas se tornaram parte dos autos da justiça e embora circulem pelas redes sociais até hoje, elas se destacam e só ganham força pelo filme que soube articular umas às outras e traçar um triste panorama da realidade social brasileira.

A primeira delas se encontra logo na primeira parte do filme. São imagens gravadas de uma câmera dentro de uma viatura policial que circula pela favela da Palmerinha na Zona Norte do Rio de Janeiro em 2015. Avistamos dois policiais (um dirigindo o veículo e outro sentado ao lado) e um terceiro do qual apenas ouvimos sua voz já que está no banco traseiro e encoberto pelo motorista. A conversa gira em torno da ronda pelo local e logo adiante ouvimos disparos claramente provenientes da viatura (vemos quando o carona coloca o corpo para fora do veículo), o carro para. Em seguida, escutamos gemidos. Indagados de por que os feridos corriam na rua, um deles responde (Chauan Jambre Cezario, o único dos dois a sobreviver): “Não, a gente tava brincando, senhor”. Na sequência, entram no carro o jovem Chauan (com a camisa ensanguentada no peito) acompanhado da mãe e do outro rapaz desfalecido. No registro da ocorrência, os policiais forjam um auto de resistência acusando os jovens de atirar contra o carro. Ao longo do filme, acompanhamos o processo do caso que vai a júri popular e como peça de acusação usam um outro vídeo feito com o celular de Alan de Souza Lima, de 15 anos, morto no local. As imagens confirmam a versão de Chaun (no vídeo de Alan, escutam-se os disparos do carro da polícia) relatada em justiça e dois policiais são finalmente condenados.

Adiante, mais na metade do filme, vemos outra cena de policiais que alvejam Eduardo Felipe Santos Victorde 17 anos. O fato acontece no morro da Providência com policiais da UPP - Unidade de Polícia Pacificadora também em 2015. A imagem era de um celular e ouvimos em voz off uma mulher afirmar que o rapaz foi atingido no momento em que levantou as mãos para o alto. A gravação feita de cima de uma casa fica parcialmente encoberta por um poste. Ainda assim vemos três policiais com capuz puxar o corpo da vítima, disparar para o alto e colocar uma arma na mão do morto adulterando mais uma vez a cena do crime para justificar legítima defesa. 

Os vídeos que vazaram das operações policiais ou os registros amadores de câmeras constituem peças fundamentais para dar voz às famílias em luto. O trabalho de Natasha Neri e Lula Carvalho demonstra que os relatos das mães negras e pobres sobre seus filhos mortos injustamente são claramente desconsiderados e sem valor social ou jurídico. Nem a imprensa e nem tampouco o Estado buscam entender suas versões. Apenas os vídeos dão credibilidade à palavra delas. De toda forma, as imagens em si também não surtem efeito sozinhas. Um dos méritos do filme é articular estas imagens no sentido de potencializar as organização das mães e demonstrar como a união e a militância das mulheres é o que desfaz este silenciamento. Fica a pergunta de quantas das 16 mil mortes desde 1997 foram auto de resistência forjado pelos policiais já que o registro feito pelas câmeras de vigilância da polícia ou os vídeos da câmeras de celular só se vulgarizaram muito recentemente.

Sem dúvida, o documentário busca o entendimento deste dado de letalidade juvenil mas o seu subtexto questiona no geral uma política de segurança pública que na sua essência estimula o confronto, acoberta os crimes e na qual seus agentes são apenas peões no complicado tabuleiro de xadrez da violência e injustiça social no Brasil.

*Elianne Ivo é professora do Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Edição: Brasil de Fato RJ