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Quem é mal-educado?

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O sempre diligente juiz federal de primeira instância em Curitiba nunca deixou de achar caminhos tortos quando queria investigar Lula
O sempre diligente juiz federal de primeira instância em Curitiba nunca deixou de achar caminhos tortos quando queria investigar Lula - Wilson Dias/Agência Brasil
Quem ocupa cargo público é servidor do público, deve a ele deferência

Por esses dias, em meio a um governo que erra muito, bate cabeça sem parar e volta atrás toda hora, um episódio menor talvez tenha sido o mais expressivo da postura antidemocrática que tomou conta da República. Não foi ao piti de Paulo Guedes que fugiu de compromissos para manifestar sua discordância com o chefe; a promoção imoral do bancário filho do general vice do capitão; a reincidência delituosa de Onyx; as enormidades criacionistas de Damares; ou os delírios de Ernesto.

O personagem da semana recheada de lambanças foi o “superministro” da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro. E o fato ocorreu num prosaico supermercado. Ele fazia compras quando foi abordado por um cidadão com uma bandeira do Brasil nos ombros, que perguntou: “E o Queiroz? Ele não é pauta?”. O caso, como todos sabem, se refere ao motorista e ex-PM lotado no gabinete do filho de Jair Bolsonaro, que teve movimentações financeiras suspeitas detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf.

Queiroz viu passear por sua conta muito mais dinheiro do que ganha legalmente, recebeu depósitos de assessores do então deputado estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro, hoje senador, que sugerem, pelas datas coincidentes, um pedágio cor laranja. Além disso, foi detectado depósito na conta da primeira-dama. Um buquê de malfeitos.

Nada foi explicado. O homem de confiança da família foi convidado a depor duas vezes e não compareceu, tendo depois passado por uma cirurgia, da qual já recebeu alta. Seus familiares, igualmente convidados a prestar esclarecimentos, posaram de egípcia e o parlamentar, que pode escolher data e local para falar, ainda não se manifestou.

O cidadão do supermercado, por isso, fez uma pergunta importante e oportuna. Pode-se dizer que o ministro não é responsável pelo caso, cabendo ao Ministério Público apurar. No entanto, o sempre diligente juiz federal de primeira instância em Curitiba nunca deixou de achar caminhos tortos quando queria investigar Lula.

Além disso, é bom lembrar que, por desejo do próprio ministro, o Coaf foi deslocado para sua pasta, o que lhe permitiria de ofício acompanhar o caso, se julgasse relevante. Curiosamente, a única manifestação oficial foi jogar suspeita sobre a quebra de sigilo, algo que, convenhamos, Moro conhece como poucos.

Voltando ao cidadão que protestou no supermercado, ficou também patente a presença constrangedora do segurança, já identificado (Marcos Koren), que fingiu não conhecer o patrão mas manteve a pose de intimidação. Acostumado a ser aplaudido em aeroportos e premiações da mídia corporativa, Moro mandou do caixa onde pagava suas compras um muxoxo chateado: “Você está sendo mal-educado com todos”. Juiz de sentenças duras, Moro errou no julgamento. O homem desempenhava com denodo seu papel de cidadão. Se foi indelicado, paciência, faz parte do jogo. Quem ocupa cargo público é servidor do público, deve a ele deferência. Não responder a um pedido de informação legítimo, ainda que incisivo e malcriado, no entanto, vai além da falta de educação por parte do ministro: é caso de improbidade.

Outra freguesa do armazém entra em cena e cobra do titular da pasta de segurança pública: “Você não é superministro? Ajude o Ceará”. Para um governo que assumiu prometendo resolver a questão da segurança como prioridade, a estreia no estado nordestino tem mostrado que um revólver na mão e nada na cabeça apenas reedita os resultados pífios da intervenção militar no Rio de Janeiro.Como se sabe, no entanto, a reação do governo à abordagem de Moro não foi responder ao questionamento ou utilizar dos instrumentos legais para apressar a coleta de depoimentos, mas sim aumentar a segurança do ministro. Possivelmente o auxiliar sonso foi advertido e Moro não deverá mais comprar pão para o lanche da família. Deve, contudo, manter a presença nos foros onde alimenta sua fome incontida de bajulação.

A atitude de um governo que não sabe lidar com a crítica e com cobranças tem se manifestado de várias formas. A imprensa tem sido sempre vista como ameaça e por isso tem sido objeto de um jogo infantil de punição e recompensa. Para os dóceis, entrevistas que depois são desmentidas de cabo a rabo (calado, Bolsonaro não erra); para os levemente críticos, ameaças de retirada do doce da mão da criança (a publicidade oficial).

As duas formas de educação

Mas o mais exemplar nesse caso é a concepção de educação do ministro. Ele, como de resto todos os seus pares, inclusive o titular da pasta da educação, Vélez Rodriguez, nunca deve ter lido Paulo Freire. Para o educador pernambucano, uma das referências mundiais em pedagogia, há duas formas de educação: a educação bancária e a educação problematizadora.

A primeira é cheia de certezas, autoritarismo, respostas prontas e comportamentos domesticados. Já a educação problematizadora se dirige para a construção de uma consciência reflexiva e politizada acerca dos fatos que constituem a realidade social. A educação bancária acomoda, a educação problematizadora liberta.

Por isso, para Freire, a etapa mais importante da educação não está nas respostas, mas na capacidade de fazer as perguntas certas. Para o educador, nenhuma ordem opressora sobreviveria se as pessoas passassem a perguntar: “Por quê?”. Quem pergunta muito, sobretudo as questões mais difíceis, ao contrário do que Moro pensa, deve ser considerado o mais bem-educado dos cidadãos.

Essa ideia de educação problematizadora está num livro clássico de Paulo Freire, “A pedagogia do oprimido”. O pensador pernambucano não deixaria de evoluir e perguntar sempre, desdobrando sua reflexão. Em um de seus escritos mais tardios, ele ajudaria a entender a atitude do homem do supermercado, quando define que a indignação, e até mesmo a raiva, é também legítima na prática existencial que nos leva não ao ódio, mas ao impulso para ações justas e éticas.

O Brasil nunca precisou tanto de Paulo Freire e de cidadãos educados.
 

Edição: Joana Tavares