Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | A pauta instintiva do impeachment

"Qual é a viabilidade de derrotar as pautas regressivas do governo sem derrubar junto o próprio governo?"

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"Vozes da esquerda levantaram-se contra a proposta argumentando que não seria uma solução política viável nem desejável no momento"
"Vozes da esquerda levantaram-se contra a proposta argumentando que não seria uma solução política viável nem desejável no momento" - Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

É a segunda vez este ano que alguns setores progressistas da sociedade mencionam o impeachment como possível saída para os desvarios do presidente Bolsonaro. Curiosamente desta vez diferentes vozes da esquerda rapidamente levantaram-se contra a proposta argumentando que o caminho não seria uma solução política viável nem desejável no momento.

Dentre outros textos que emitem esta opinião e que estão circulando, destaco os seguintes:

Impeachment de Bolsonaro agora seria ou não um erro? (Revista Fórum)

Porque o impeachment de Bolsonaro é um equívoco (Brasil de Fato)

Para analistas, processo de impeachment contra Bolsonaro ainda não é viável politicamente (Rede Brasil Atual)

Pretendo aqui questionar algumas afirmações que as opiniões acima compartilham.

A meu ver, o que há de comum nas opiniões anteriores é a avaliação de que a pauta do impeachment deveria ser um resultado de um processo de acúmulo de forças dos setores progressistas no médio prazo. Caso contrário, ele poderia parir uma situação ainda mais desfavorável. Deste ponto de vista, ainda não estaria na hora de apresentar uma solução como o impeachment pois nem a esquerda nem o campo progressista têm força para levá-lo adiante e provavelmente não haja correlação favorável dentro do congresso para que ele se consume.

Há diversas insuficiências nestas afirmações.

A primeira é que elas não levam em conta o fator tempo. Não se pode esperar para disseminar a pauta do impeachment somente quando as condições políticas para tanto já estiverem dadas, e sim muito antes. A construção de uma pauta como essa envolve todo um processo de agitação, cálculo político das demais forças e inculcamento na sociedade que não permite que seja feita de forma imediata. Aliás, não é de menor importância observar que a insistência na inviabilidade do impeachment e na acumulação de forças para tanto adequa-se relativamente bem à ideia de que as principais batalhas se darão nas eleições de 2020 e de 2022 e que, portanto, é necessário esperar e, enquanto isso, tentar no máximo um desgaste mais prolongado do governo, ignorando que quem tem a iniciativa política hoje é o próprio governo.

Mas ignora-se também a dimensão do dever moral da esquerda em anunciar explicitamente a necessidade de derrubar este governo. Não apenas porque o presidente já cometeu diversas ilegalidades ou porque ameace acabar com praticamente todos os direitos básicos dos setores mais necessitados, o que moralmente já seria suficiente para defendermos a sua derrubada imediata, mas também porque temos a grande vantagem histórica de ter um presidente no poder que representa, em carne e osso, tudo aquilo que rechaçamos. Por que não aproveitar essa condição? Por que deveríamos ignorar o fato de que a personalização da política, neste momento, nos ajuda?

Deve-se levar considerar seriamente o fato de que a conjuntura atual impõe a condição de que derrubar Bolsonaro é o único caminho a curto prazo de tentar frear o avanço das pautas neoliberais e reacionárias que estão em curso. Frente a um governo com a natureza deste, o impeachment vai se tornar uma pauta instintiva para crescentes setores insatisfeitos da sociedade e é provável que retorne em breve à pauta.

Pois a pergunta que não quer calar é a seguinte: qual é a viabilidade de derrotar as pautas regressivas do governo sem derrubar junto o próprio governo? O que a esquerda ignora categoricamente na sua análise é que este não é um governo democrático sensível às pressões populares. É um governo de novo tipo que está disposto, até onde podemos perceber, a ir até as últimas consequências para implementar um programa neoliberal radical, com todas as suas consequências, a despeito da oposição pontual dos setores progressistas. É possível que uma parte da população esteja intuindo este imperativo. Tomemos o exemplo mais gritante da educação. Temos alguma esperança de que o ministro Weintraub volte atrás no projeto FUTURE-SE? Consideramos crível que uma possível queda do ministro Weintraub possa barrar as pautas de desmonte da educação pública? Se nós não acreditamos nisso, porque esperamos que o restante da população acredite e lute por uma solução que não é viável? Neste sentido, a tese de que a queda de Bolsonaro só seria positiva se fosse o resultado da derrota do seu programa de governo é anti-dialética. É verdade que o programa de governo é maior que Bolsonaro, mas é igualmente verdade que no bloco histórico articulado neste momento a derrota de Bolsonaro tende sim a fragilizar gravemente este programa.

O problema da interpretação emitida nos textos mencionados é que ela trata a pauta do impeachment como um instrumento tático ofensivo, como o desfecho de um acúmulo de forças e lutas anteriores que, uma vez em movimento, impulsionariam esta solução política. Esta leitura não considera adequadamente que na atual conjuntura a pauta do impeachment é um instrumento defensivo correspondente à correlação de forças. Expliquemos. Não se deve esperar para pautar o impeachment somente quando haja condições políticas para que ele proporcione uma solução progressista. Esta forma de colocar o problema sustenta-se numa visão da política como soma-zero. Ou seja, ela pressupõe que uma derrota deste governo deveria, necessariamente, significar uma vitória da esquerda, e que qualquer outro resultado não seria aceitável. Ora, se concordamos que a conjuntura atual é de defensiva, porque uma derrota deste governo não seria aceitável mesmo que o protagonismo não fosse nosso? Não seria essa uma imposição da própria condição de defensiva que vivemos? O erro é justamente pensar que o impeachment nesta conjuntura pode ser uma arma ofensiva. Isto sim parece fora do horizonte de possibilidades.

Aceitemos que a política não é um jogo de soma-zero. Entre nós e o presidente se interpõem uma série agrupamentos com interesses contraditórias e disputas que, em boa parte, nem chegam ao conhecimento das organizações de esquerda. Apostar no impeachment é exatamente apostar que ele pode vir a tornar-se um instrumento destas contradições e disputas internas dos setores do centro e da direita para barganhar, ameaçar ou desgastar o presidente.

Sim, defender o impeachment é fazer uma aposta. Mas deve-se levar em conta que a política é uma arte que envolve um alto grau de incerteza e a capacidade de fazer apostas. E só há aposta quando não se tem certeza do resultado. Aliás a não aceitação desta condição ontológica do futuro é um dos mais graves desvios da esquerda atual. Tem-se a impressão de que só devemos entrar no jogo quando o resultado da vitória esteja garantido. Infelizmente isso é ilusão. Aliás, deve-se recordar que a mais recente aposta que uma parte da esquerda fez, a de que o governo Bolsonaro não sobreviveria para além de julho, não resistiu aos fatos.

Por fim, um último temor que tem sido veiculado é o de que um impeachment do Bolsonaro poderia representar uma solução pior. É verdade no sentido de que o futuro não está pré-determinado e de que é a luta que define os rumos da história, neste sentido, sempre há a possibilidade da derrota. Aventa-se o risco de que Mourão assuma o comando do governo com o mesmo programa e “resolva” as contradições que o Bolsonaro produz. O problema desta leitura é que ela parte do pressuposto de que o governo Bolsonaro é fraco. Ao contrário, eu diria que hoje o maior risco para o campo progressista não é a substituição de Bolsonaro por Mourão, e sim a consolidação de Bolsonaro e a sua manutenção como presidente durante 8 anos. Isso seria preferível?

* Lauro Duvoisin é doutorando em Ciência Política e membro do FRONT – Instituto de Estudos Contemporâneos.

Edição: Sul 21