Paraíba

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Agente, a gente

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"Lá eu visto a farda do opressor" - Reprodução
A realidade é nada bonita e a exposição das contradições incomoda

 

“Aqui estou mais um dia, sobre o olhar sanguinário do vigia. Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de uma hk”. 

Para tentar iniciar, nada melhor do que esse hino das cadeias, presídios e unidades de medidas socioeducativas, que são mini presídios, ou melhor, um presídio para menos gente. Desde que comecei a trabalhar no sistema socioeducativo, muitas são as perguntas e dos mais variados tipos. Pois bem, há muito tento escrever sobre, porém não é fácil. Gostaria que fosse “simples” como fazer versos apaixonados, mas não é. A realidade é nada bonita e a exposição das contradições incomoda. 

No primeiro dia lá estava eu, do mesmo jeito de sempre. Deixei os alargadores na mochila, mas os piercings continuaram mesmo sendo aconselhado a tirar. O que até fiz durante um momento, mas devido ao manejo, resolvi usá-los mesmo. Primeira impressão, Boom! O visual não agradou os outros “guerreiros”, e a vista prisional ficava clara em meus olhos. Gostaria de ressaltar que há um grande abismo entre fazer um trabalho social, oficina, roda de conversa ou algo do tipo e trabalhar pelo salário de agente, lá eu visto a farda do opressor. E por vestir tal farda, que durante muito tempo me neguei a usar, os jovens não são muito receptíveis e o ambiente hostil se mostra com mais força. Não que isso diminua com o passar do tempo, mas depois acostuma.  

Entre grades, banho de sol e violência, esse é meu novo trabalho. Assim que fico responsável por um mini pavilhão, a luta é para ter uma lida tranquila com os jovens, através do diálogo e respeito. A verdade é que no começo da pra sentir que o ambiente expele um pouco de medo, e nem tudo soa natural. De monitor, rockeiro e playboy, esses são os nomes que sou chamado, e aquela visão romântica/inocente de como seria um trabalho com pessoas privadas de liberdade vai se esvaindo. Pelo meu jeito e perfil, por ficar sempre calado na roda de conversa dos agentes, enquanto se fala muito de agressão, violência e armas, logo fui taxado de direitos humanos, pelo simples fato de covardemente usar meu silêncio de novato. Após um tempo e conseguindo ter um melhor relacionamento com os internos, não demorou para surgir comentários e desconfianças por parte da equipe. Cogitações de ser conivente em relação a levar droga ou até mesmo celular, pelo fato de nos primeiros momentos de aproximação, dialogava bastante com os internos a qual eu “tomava conta”. Não que nenhum jovem daquele nunca tenha tentado me oferecer dinheiro para tal coisa, mas depois de algumas recusas não insistem. E isso vai de setor em setor que se fique responsável. Assim como quem parou para ler isso aqui, eu também estava cheio de curiosidade.  

O perfil dos internos era uma das coisas que mais me despertava o interesse, imaginei que seria uma verdadeira senzala, mas até o presente momento não é a realidade. O que se constata atrás dessas grades socioeducativas é o que se ver na realidade da juventude brasileira, uma grande diversidade de cores. Brancos, negros, pardos (para quem acredita) e pobres. Ricos ainda não vi por aqui. Esses conseguem logo uma liberdade assistida ou serviço comunitário. Nessa diversidade, a família que tem mais recursos garante uma melhor sobrevivência do seu familiar que tá trancado, parece clichê, mas é caro tá preso. Quem não tem condições passa mal, e conta com a solidariedade dos demais. Quando não, troca uma refeição ou lanche fornecido pela casa, por cigarro. Já tirei uns plantões na portaria, e apesar da diversidade dos filhos, os perfis das mães não variam tanto. Mulheres negras, guerreiras que enfrentam muitas situações para trazer o alimento para sua cria. Lá vem Dona Maria do interior, ônibus da prefeitura, tira de casa pra levar pra cadeia. Sob os olhares julgadores, “passa a mão na cabeça do filho vagabundo”. Na revista pessoal vira e mexe roda uma mãe ou esposa que cedeu à pressão e se arriscou pra tentar trazer um pouco de maconha. A tecnologia entra como uma faca de dois gumes, se por um lado te livra da revista vexatória, por outro deixa o celular mais caro lá dentro. 

Parece que empacou na diversidade né, mas é real. Aqui tem de tudo, assassino, estuprador, ladrão, traficante em vários níveis e tem também quem rodou de bobeira por furto, receptação, ou apenas com cinco “dóla” no bolso. É parece que me perdi com tanta informação, mas com pouco mais de um ano de sistema, nem tudo incomoda mais tanto. Certa vez li que a identidade é a armadura da saúde mental, li também que o trabalho impulsiona a formação da identidade. Pois bem, diante disso tudo que foi relatado, certas convicções ainda continuam comigo. Hoje bem menos paciente com o mundo e paciente na sala de terapia, só confirmo o que já sabia, não vale tudo para se encaixar. Logo eu que já tentei me encaixar e me enquadrar em tanta coisa, já deveria ter entendido e deixado de lutar por isso. Porém desde antes, quando ainda corria o risco de ser só mais um jovem como esses, sei que é foda ser discriminado o tempo todo e de um lado ou de outro a pessoa acaba cedendo algumas pressões. Não acho que sou melhor do que qualquer interno, já disse isso a vários deles. Não sei quanto tempo mais vou durar nesse emprego, e digo mais, se tivesse outra opção no momento, talvez corresse pra lá, ou não. E apesar de momentaneamente meu mundo tá cinza, sigo tentando colorir com poesias e literatura marginal. E entre revólveres, 380’s e nove milímetros, só tenho uma arma na mão, minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição.

Edição: Heloisa de Sousa