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Revolta e sentimento do mundo

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"Fiscais do Ibama, educadores, diplomatas, sanitaristas, médicos, enfermeiros, profissionais de saúde do SUS e outros servidores públicos são, hoje, a linha de frente da democracia" - Créditos da foto: Reprodução
Bolsonaro não é justo, mas vingativo

Para enfrentar o fascismo, vale tudo: resistência, luta e poemas. Em seu terceiro livro de versos, Sentimento do mundo, Carlos Drummond de Andrade reuniu talvez o mais consistente conjunto de poesias políticas da literatura brasileira. Literatura engajada, como se dizia à época. O volume é de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, e carregava todas as incertezas e angústias daquele momento.

O poeta mineiro enxergava com nitidez as trevas em que se encontrava o mundo, mas não abria mão de intervir com suas palavras de convocação à consciência e à transformação social. Esse gesto afirmativo, ainda que muitas vezes melancólico, explica o título do livro: o sentimento do mundo. Uma sensação de pertencer a algo maior, que vai além do indivíduo em favor de causas coletivas, justas e solidárias. Que hoje faz muita falta.

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Um dos poemas mais conhecidos do livro era “Elegia 1938”, que se abria com a constatação de um momento sem muitos horizontes de liberdade: “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco”, para concluir, um tanto pessimista: “Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição / porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. Não era uma capitulação, mas uma provocação à revolta. Não precisamos dinamitar o coração do capitalismo para enfrentar as injustiças. A verdadeira luta, na maioria das vezes, se dá no dia a dia.

Bolsonaro é nossa “ilha” de estupidez. O melhor seria dinamitá-lo com o impeachment, com a CPI do Genocídio, ou mesmo com a eleição do ano que vem. Mas o país não pode esperar mais. A cada dia seu projeto de destruição do Estado brasileiro e de extermínio da democracia ganha novo capítulo, da saúde ao meio ambiente; da economia à educação; das relações internacionais aos direitos humanos. Em cada um desses campos há muito o que fazer além da “pressa em confessar a derrota” de que fala Drummond no mesmo poema.

Um bom exemplo foi dado pelos fiscais ambientais, que se manifestaram contra a instrução normativa do Ministério do Meio Ambiente, que praticamente paralisa as multas aos criminosos. A determinação do ministro contra o meio ambiente, Ricardo Salles, foi a de retirar dos fiscais o poder de fazer o seu trabalho, obrigando que cada autuação fosse remetida a uma chefia superior. Na verdade, as multas não poderão ser lavradas por quem fiscaliza, mas apenas por instâncias burocráticas afastadas da realidade do campo e sensíveis às pressões.

O presidente não gosta de multas ambientais ou qualquer entrave legal aos seus desejos de comprometer o meio ambiente

Trata-se de um duplo entrave, que começa com a ação protelatória de relatórios que sobem e descem nos andares da burocracia sem resultar em punição, para desaguar na ameaça à autonomia dos servidores em fazer seu trabalho. Tudo isso em meio à mobilização mundial pela Cúpula de Líderes sobre o Clima, na qual o Brasil, merecidamente, já entra como pária ambiental. Bolsonaro terá três minutos para dizer que quer defender o meio ambiente. É tempo demais para tanta mentira.

Ao mesmo tempo em que país, por intermédio de seu equivocado representante, passa o pires entre os países ricos com uso de comparações idiotas (como os frangos expostos em fornos de padaria), deixa clara sua vocação de servir aos interesses do agronegócio, das madeireiras e da grilagem de terras. O mesmo Salles que cobra dos países ricos investimento para defesa do meio ambiente, impede que o país gaste recursos do Fundo Amazônico, doados pela Alemanha e Noruega, travados pelo desmonte operado por ele na composição do comitê gestor.

A mobilização e protesto dos servidores do Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade é a expressão de que é possível resistir à barbárie a todo momento, a partir do gesto determinado de cumprir a lei. Ao denunciar o “apagão do rito processual” da nova medida, os servidores deixaram evidentes tanto o risco de insegurança jurídica como o esvaziamento anunciado do quadro de fiscais (que já são poucos e sem concurso à vista) por medo dos processos administrativos facilmente detectáveis na sombra da instrução do MMA.

Fiscais do Ibama, educadores, diplomatas, sanitaristas, profissionais de saúde do SUS são a linha de frente da democracia

É bom lembrar que combater multas ambientais foi uma das primeiras ações do presidente eleito, que perseguiu um fiscal que o havia autuado por pesca ilegal. O servidor acabou demitido do Ibama por fazer seu trabalho. Bolsonaro não é justo, mas vingativo, o que não o credencia para exercer funções republicanas. E, como se sabe, não gosta de multas ambientais, multas de trânsito ou qualquer entrave legal aos seus desejos de comprometer o meio ambiente ou a segurança das pessoas.

Na verdade, afastar fiscais de suas funções e impedir as multas por crimes ambientais é até fácil. Nem mesmo chefes da Polícia Federal estão protegidos no exercício de suas funções. Alexandre Saraiva, que comandou a maior investigação e apreensão de madeira ilegal no Amazonas foi taxativo: nunca um ministro do Meio Ambiente havia se manifestado contra a proteção da floresta amazônica. E enviou notícia-crime ao STF pedindo apuração sobre a conivência do ministro com o contrabando e falsificação de documentos. Como desagravo, o delegado Saraiva foi afastado do cargo.

Antes disso, nem mesmo o internacionalmente conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais escapou da sanha negacionista. Os dados coletados sobre desmatamento não foram questionados, nem poderiam, mas a transparência na divulgação irritou ao devastador-mor. É assim que funciona o mito, a verdade absoluta prescinde da evidência dos fatos: desmatar pode, desde que ninguém fique sabendo. Mais uma vez, funcionou o brio: Ricardo Galvão, presidente do Inpe, foi demitido, mas ganhou reconhecimento de seus pares em todo o mundo.

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Presidente opera para destruir órgãos públicos

Há muitos exemplos significativos de ações que vêm sendo tomadas em outros setores, que mostram que não dá para baixar a guarda no dia a dia nem esperar que venha de cima a solução para os problemas. A resistência precisa começar em casa. Como na educação, que vem sendo esvaziada na constante troca de dirigentes pelo ministro que responde pela pasta. Para quem achava que não havia nada pior que Weintraub, o presidente mostra que tem repertório inesgotável para a mediocridade, com a escolha de Milton Ribeiro.

A nomeação recente da nova presidente da Capes, Cláudia Manani Queda de Toledo, não apenas rebaixa o cargo pelas credenciais chinfrins da professora (inclusive com denúncia de plágio), como anuncia a continuidade da política de desmonte da pesquisa no país. Não que seu antecessor fosse melhor – aliás, não se pode lamentar a perda de quadros bolsonaristas trocados por outros igualmente lamentáveis. A demissão nunca é mérito do demitido, que um dia serviu ao monstro sem reclamar, mas apenas reafirma o arrivismo e a subserviência dos chegantes. No fundo do poço, há um alçapão.

O mesmo processo se deu em outros órgãos da educação, como o Inep e o CNPq, para agrado de aliados “intelectuais” recrutados nas hostes de Olavo de Carvalho. O protesto que se seguiu, tanto de servidores de carreira como de universidades públicas e privadas, é mais uma demonstração de que não se pode aceitar pacificamente a política de terra-arrasada. A revolta, nessas horas, é um imperativo; a desobediência um mandamento ético. O presidente é livre para indicar dirigentes de órgãos públicos, mas deve ser contido quando opera para destruí-los.

Enquanto o “Fora, Bolsonaro” não se concretiza, só o Sentimento do mundo é capaz de segurar o país nos trilhos

Na diplomacia, o comportamento predatório do ex-chanceler Ernesto Araújo - que gerou prejuízos comerciais, isolamento de fóruns multilaterais e comprometimento na compra de vacinas -, foi também denunciado pelos diplomatas de carreira. Mesmo com os rígidos protocolos de silêncio da instituição, eles divulgaram carta firmada por parte expressiva do corpo o Itamaraty. Somada às críticas que vinham de todos os setores, do empresariado ao Congresso, a reação interna foi a pá de cal na carreira do pior ministro das relações exteriores do mundo. O prejuízo na imagem do país vai cobrar tempo.

Os exemplos são muitos, em diversas áreas. É sempre preciso marcar sob pressão, o tempo todo, sem descanso. Quando um presidente se esforça para submeter o serviço público aos seus interesses e de seus apoiadores e desobedecer as determinações constitucionais das políticas públicas, a linha da civilidade já foi deixada para trás. Instalada a barbárie, resta a resistência.

Fiscais do Ibama, educadores, diplomatas, sanitaristas, médicos, enfermeiros, profissionais de saúde do SUS e outros servidores públicos são, hoje, a linha de frente da democracia. Triste do país em que se esforçar para cumprir a lei e denunciar o arbítrio se torna um ato de rebeldia. Enquanto o “Fora, Bolsonaro” não se concretiza, só o sentimento do mundo é capaz de segurar o país nos trilhos.

Edição: Elis Almeida