Paraíba

Coluna

É preciso banir a fome

Imagem de perfil do Colunistaesd
Pessoa em vulnerabilidade social - Imagem de Kasun Chamara por Pixabay
Como nação, é preciso costurar um pacto pelo banimento da fome como princípio de organização social

Por Thiago Lima*

A mais recente pesquisa do Datafolha mostra que a fome vem aumentando de forma muito veloz no Brasil: um em cada quatro brasileiros não conseguiram comer nos últimos meses. A pesquisa destaca, também, que a fome aumenta mais entre famílias negras, entre as mulheres e entre as pessoas com baixa escolaridade. Há um destaque regional: o Nordeste é a região onde a fome atinge a maior quantidade de pessoas. Entre aquelas que possuem apenas até o Ensino Fundamental, 32% relatarem ter menos alimentos do que o suficiente em casa.

Essas são pessoas entre as mais vulneráveis em nosso país, e isso não é uma condição que surgiu agora, na pandemia. Embora a crise da Covid-19 esteja intensificando a pobreza e a miséria no Brasil, a crise econômica e de saúde está apenas explorando a trajetória de séculos de marginalização de uma enorme parcela da população, mas sobretudo daqueles grupos que foram os mais violentados e abandonados em nossa história. Trata-se de uma vulnerabilidade que não é incidental, mas, sim, construída e mantida de forma dolosa ou culposa.

Como disse o diretor da Organização Mundial da Saúde, Michael Ryan, em junho de 2020:

O vírus não age sozinho, o vírus explora um controle fraco (...) O vírus explora os sistemas de saúde fracos. O vírus explora uma governança ruim. O vírus explora falta de educação, falta de empoderamento das comunidades. Essa é a realidade da pandemia. Não há respostas mágicas, não existem coisas divinas. Não podemos usar adivinhação para acabar com isso. Temos que usar os recursos que temos à nossa disposição. E sabemos de muitos exemplos de países: olhem para os países que tomaram medidas, olhem para os países que contiveram e controlaram esta doença. E vocês encontrarão as respostas.

Em suma: o vírus ataca as pessoas, a pandemia ataca as sociedades. No nosso caso, nossa sociedade está baseada na manutenção da condição de vulnerabilidade de milhões de pessoas. As consequências disso serão intergeracionais. Mesmo que a tendência de reversão da fome ressurja em alguns anos, os corpos malnutridos poderão carregar por anos, e até para as gerações futuras, por meio de doenças adquiridas, os traços da vulnerabilidade que lhes foi imposta. Puérperas, fetos, crianças e idosos, juntamente com as pessoas portadoras de deficiência, que precisam de toda a proteção e apoio, estão entre os que mais sofrem danos – físicos e psicológicos. 

A fome e a ameaça da fome são os motores que empurram as pessoas, muitas vezes desesperadas e combalidas, a todo tipo de atividade para conseguir o mínimo necessário para a sobrevivência do corpo biológico: o alimento. E, paralelo a isso, está a dignidade que, frequentemente, só é recuperada por meio dos trabalhos que costumam ser os mais rejeitados por quem não atravessa dificuldades extremas. 

E, assim, vai-se quebrando o espírito de uma nação, limitando sua capacidade de erguer sua vista e projetar um futuro grandioso. Cada vez mais, mais de nós precisam baixar seu olhar em busca das condições mínimas de sobrevivência em um país de vastas possibilidades de desenvolvimento. Cada vez mais o imperativo “a fome tem pressa” mina a perspectiva de elaboração e execução de planos que poderiam colocar o país num caminho de prosperidade e de justiça social, baixando pretensões e expectativas em troca do menos pior possível.

Por isso, não pode mais ser suficiente ter como meta que as pessoas se alimentem três vezes por dia, como proferiu Lula em seu primeiro discurso de posse. Será preciso pensar mais alto e com mais ambição se quisermos deixar de ser uma nação tão desigual e sádica. Como nação, precisaremos costurar um pacto pelo BANIMENTO DA FOME como princípio de organização social, pois a fome, no Brasil, é uma imposição política. 

Não basta ter como meta diminuir a quantidade de pessoas famintas. É preciso banir a fome como uma possibilidade social. Isso significa criar leis e políticas públicas que façam valer o direito à alimentação, inscrito na Constituição Federal, e que priorizem, com orçamento adequado e com maior importância sobre outras ações, alimentos saudáveis e produzidos de forma ecologicamente equilibrada a todas as pessoas, sobretudo àquelas em condição de vulnerabilidade social exacerbada por motivos completamente fora de seu controle, como é o caso desta crise. É preciso BANIR A FOME como princípio tolerável, torná-la hedionda, de forma a tornar automático o auxílio a quem vier a se sentir faminto/a. É preciso banir a fome. 

 

*Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais da UFPB.

www.fomeri.org
 

Edição: Heloisa de Sousa