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CRÔNICA. E me diga o nome do seu pai

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ele sentia como se aquela cratera na sua vida fosse se abrir sempre, mesmo que migrasse, se mudasse, ou até se pudesse nunca mais atualizar sua documentação - Pedro Carrano
Eram dez da noite do último dia para regularizar o título eleitoral

Eram dez da noite do último dia para regularizar o título eleitoral.

O clube de mães organizou o atendimento e a casinha ficava no fim de uma rua estreita de caliça, cheia de postes, um início de frio curitibano e inclusive uma garoa tão imperceptível na pele que somente os narizes reagiam a ela.

Ele chegou de moto com a esposa, atravessou o portão de madeira, que mais parecia de uma casa no campo. O colégio eleitoral de ambos se encontrava agora do outro lado da cidade, depois que tomaram parte na nova ocupação.

Eram, de alguma forma, migrantes, mas nunca tinham pensado sobre essa sua condição de permanente movimento. O fato é que o casal queria de qualquer forma votar neste ano, sentia uma urgência, e atualizar a escola onde votariam era também um passo para tentar criar uma frágil raiz na nova morada.

Entraram no clube de mães, onde um aglomerado bom de pessoas se insurgia contra o passado. “Agora pode né?”, ele disse. “Nunca deixamos de aglomerar”, corrigiu a esposa, enquanto ele se sentia em casa, abraçava alguns que também chegavam do trabalho, no amontado de homens, cães, mulheres do clube e crianças, naquele espaço feito com amontoados de madeirite e doações de armários de velhas paróquias.

As chuvas concentradas e a calha ferrada mofaram o espaço, vergando algumas paredes.

As pessoas se esgueiravam como os fachos de luz e faziam uma fila meio torta. A documentação necessária era simples e um militante voluntário entrava no sistema do Tribunal Eleitoral, mesmo com o sinal de internet fraco. O clube de mães ganhava respeito com esse tipo de atendimento, ele chegou a pensar, mas não enunciou para ninguém a ideia, nem para a esposa.

Havia também um pouco de refrigerante Cini na mesa, somado ao café, pão, bolo de cenoura e a alguns livros de doação, além dos tecidos produzidos pelo atelier do clube de mães. “A máquina quebrou mais uma vez né?”, sua companheira perguntou para a presidenta do clube e, no íntimo, reforçou o que considerou o mal menor por ter escolhido o trabalho no supermercado, ainda que quisesse ter apostado suas fichas na construção de uma cooperativa apenas delas. "Lá eles me pagam uma miséria".

Um rasgo de frustração atravessou a espinha dela, enquanto o marido chegava na beirada da mesa onde o militante passava a perguntar seus dados:

 

Nome? Abraão da Silva

CPF? Não tenho

Profissão? Construção civil

Casado? Oficialmente, não.

Filhos? Sim, três.

Data de nascimento?  Novembro de 1981.

Nome do pai e da mãe? Me passa o seu RG?

O militante perguntou e talvez não tenha notado quando foi passar informações para o papel e perguntou pela ausência do nome do pai no documento.

Ele então gostaria que o questionamento tivesse saído em tom mais baixo, ou que as pessoas aglomeradas no clube não tivessem parado de conversar justamente no momento da pergunta. Que a sua esposa não tivesse olhado para ele com ar de que deveria explicar logo alguma coisa, enquanto o fio de memória o paralisou e levou para um filme longe daquela quebrada.

O pai inconstante, o pai que viajava, o pai que um dia não voltou mais. O pai que matou um desafeto e de certa forma deixou a polícia levar o filho, na batida fulminante, contra quem ainda estava na força da juventude.

Só tenho mãe mesmo, respondeu solitário, para dentro, como se falasse no meio de um deserto onde não coubesse qualquer pregação. Ele podia ter dito que não tinha pai, mas não seria apenas uma troca na ordem dos fatores e das palavras.

Tomada de volta a rua, ligada a moto, buscando a viela de casa, entre o piso irregular, ele sentia como se aquela cratera na sua vida fosse se abrir sempre, mesmo que migrasse, se mudasse, ou até se pudesse nunca mais atualizar sua documentação.

O pai, como um fantasma, igual a um cão, corria e projetava sua sombra logo atrás dele. Foi covarde e deixou a polícia levá-lo, mas foi na boca do jovem que o pedido de desculpas permaneceu por longos anos.

 

 

Edição: Lia Bianchini