Rio Grande do Sul

Direitos Humanos

“Minha ótica dos fatos é sempre a partir do mundo dos oprimidos”, afirma Frei Betto 

O escritor participou do 50º programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato desta quinta-feira (8)

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Eu lamento muito essa infeliz coincidência de um governo neofascista em plena data do bicentenário da independência”, comentou Frei Betto - Foto: Fabiana Reinholz

“Houve o sequestro do bicentenário da independência por parte dos ocupantes do Planalto. Não tivemos uma comemoração digna da data, o presidente utilizou dinheiro público e toda infraestrutura do Estado para sua campanha eleitoral. Espero que a Justiça Eleitoral reaja como alguns partidos e oposição estão pedindo(...) O Brasil perdeu um momento especial de resgatar a sua história de independência, uma independência incompleta”, ressaltou o frade dominicano e escritor Frei Betto em conversa com a jornalista Katia Marko no programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato desta quinta-feira (8).

Durante uma hora de bate-papo, Frei Betto falou sobre o bicentenário da Independência do Brasil e sobre o lançamento do seu novo romance, Tom Vermelho do Verde (Rocco). Ganhador do prêmio Jabuti, em 1982, por seu livro de memórias Batismo de Sangue (Rocco), o escritor também está lançando os livros Jesus Militante: Evangelho e Projeto Político no Reino de Deus (Vozes) e O Estranho Dia de Zacarias. 

Assessor de movimentos sociais e educador popular, Doutor Honoris Causa em Filosofia pela Universidade de Havana e em Educação pela Universidade José Martí, de Monterrey, o entrevistado estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia é autor de 73 livros. Com o tema Arte, Ciência, Ética e a (In)dependência do Brasil, ele mesclou sua trajetória com os dias atuais. Falou também da Amazônia e do seu atual trabalho junto à Cuba, sobre a soberania alimentar.

“Enquanto não superarmos o sistema capitalista será muito difícil celebrarmos o casamento desse belo triângulo, arte, ciência e ética”, disse.

O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, que também apresenta o programa, não pode participar ao vivo desta edição por estar de viagem à Bolívia, em um evento que discutirá os transgênicos. Durante a transmissão, o agrônomo enviou algumas perguntas ao Frei.  


"É muito importante o fortalecimento do movimento popular no Brasil para aprimorar a nossa democracia" / Foto: Reprodução

Bicentenário da Independência 

Ao falar das comemorações do 7 de Setembro, Frei Betto pontuou a linguagem chula usada pelo presidente e candidato à presidência, Jair Bolsonaro (PL), no dia da comemoração, além do uso da data como um evento de campanha. “O que mais me impressionou foi quando aqueles que o ovacionavam prestaram verdadeiro culto ao seu órgão sexual repetindo uma palavra que não sou capaz de repetir aqui, por respeito àqueles que nos acompanham, como se seu desempenho sexual tivesse alguma importância no processo político, na história desse país”, comentou. 

O dominicano, que esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar, disse que nem nesse período se lembra de uma manifestação do uso de uma expressão tão chula, de tão baixo calão como a usada por Bolsonaro. “Creio que isso não significa nenhuma ameaça à vitória do presidente Lula. Sabemos que muitas pessoas que ali estiveram nas manifestações foram induzidas por seus patrões”, ponderou.

Para ele, o Brasil perdeu um momento especial de resgatar a sua história de independência, que é incompleta. “Uma independência que não apagou as raízes do escravagismo e não integrou na nossa história e na nossa memória nacional preservando a sua originalidade, a sua diversidade, os nossos povos indígenas. Eu lamento muito essa infeliz coincidência de um governo neofascista em plena data do bicentenário da independência.”

Grito dos Excluídos 

Apoiador do Grito dos Excluídos e das Excluídas, Frei Betto afirmou que é muito importante que todos os setores marginalizados e excluídos da sociedade brasileira erguam a sua voz e mostrem a que vieram, reivindicando seus direitos e reforçando suas estruturas organizativas. “É muito importante o fortalecimento do movimento popular no Brasil para aprimorar a nossa democracia. Nossa democracia jamais estará devidamente aprimorada enquanto não lograrmos esse fortalecimento dos movimentos populares, identitários, de direitos humanos, enfim, todo esse leque de pessoas que estão de alguma forma marginalizadas e excluídas da sociedade brasileira.”


"Mais de dois mil indígenas foram massacrados" / Foto: Divulgação

Romance Tom vermelho do verde

Baseado em fatos históricos, Frei Betto trabalhou durante cinco anos na recuperação da história dos indígenas Waimiri-Atroari. Em forma de romance, o autor narra os bastidores da construção da BR-174 e as consequências para a comunidade que ali vive. 

“É uma infeliz coincidência de um lado, e feliz por outro, ele sair a público exatamente no momento em que as atenções do mundo e também do Brasil estão voltadas para a Amazônia, especialmente em decorrência do brutal assassinato da dupla Bruno Pereira e Dom Phillips”, comentou.

Conforme detalha o autor, o livro traz um episódio pouco conhecido da ditadura militar e, no entanto, muito significativo, que é o massacre de indígenas da nação Waimiri-Atroari, que fica no norte da Amazônia e sul de Roraima. “Mais de dois mil indígenas foram massacrados pelas Forças Armadas, pela ditadura, para que fossem deslocados das suas aldeias de modo que ali se abrisse a rodovia Manaus-Boa Vista, conhecida com BR 174. Eles resistiram e essa resistência levou a ditadura a dizimá-los, com arsênico, metralhadoras, incendiando malocas com todas as famílias dentro. Uma série de atrocidades que estão muito bem documentadas, mas que não foram devidamente realçadas dos relatórios da comissão de verdade. Nenhum segmento da sociedade brasileira foi tão reprimido como os povos indígenas.” 

Afirmou ter um princípio inspirado em Paulo Freire: a cabeça pensa onde os pés pisam. “Evidentemente, tendo trabalhado toda a minha vida com movimentos populares, a minha ótica da história, minha ótica dos fatos é sempre a partir do mundo dos oprimidos. A minha leitura do mundo vem a partir dos oprimidos. A minha literatura é feita a partir desse lugar social que por sua vez gerou em mim um outro lugar epistêmico.”


Amazônia perdeu 18 árvores por segundo em 2021 / Douglas Magno/AFP

Amazônia 

Durante a conversa ele também abordou a atual situação da Amazônia e os ataques às comunidades indígenas. Ele lembrou que o governo federal, além de não demarcar nenhum território, sabotou órgãos federais. “E faz absoluta vista grossa aos devastadores, os garimpeiros ilegais, as mineradoras que expandem os seus negócios contaminando os rios, principalmente de mercúrio, o agronegócio que expande suas pastagens”, complementou. 

De acordo com ele, a devastação da Amazônia significa um desequilíbrio muito grave do planeta e a desertificação daquela área. “É bom recordar que o Saara na antiguidade também foi uma floresta.”

Segundo anunciou o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), em agosto deste ano, a área de floresta desmatada da Amazônia Legal em 2022 foi a maior dos últimos 15 anos. De agosto de 2021 a julho de 2022, foram derrubados 10.781 km² de floresta, o que equivale a sete vezes a cidade de São Paulo.

Conforme destacou o escritor, a comunidade que foi objeto de seu livro hoje se encontra confinada pela Funai. “Ninguém consegue ingressar ali porque ela está entregue à cobiça de duas grandes empresas, Eletronorte e a Mineração Taboca do grupo Paranapanema. A Mineração Taboca, há mais de 40 anos, explora minerais nas terras e a Eletronorte vai abrir agora o "linhão", como muitos sabem a energia elétrica de Roraima é garantida pelo sistema da Venezuela e não integrada pelo sistema brasileiro.”

Segurança Alimentar 

Desde 2019, Frei Betto vem assessorando o governo de Cuba e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em um plano de segurança alimentar e educação nutricional na ilha. Conforme expôs o escritor, em Cuba não há miséria, morador de rua, mas tem muita insegurança alimentar devido ao bloqueio imposto pelos Estados Unidos. Situação que foi agravada pela pandemia e ainda mais pela guerra entre Ucrânia e Rússia (dois países fornecedores de insumos para a agricultura cubana).

“A partir da minha experiência no Fome Zero eu tenho trabalho na questão da substituição das importações porque Cuba gasta mais de dois bilhões de dólares por ano na importação de alimentos. 60% dos alimentos consumidos pela população cubana são importados”, disse.

Ainda, de acordo com ele, hoje a bolsa de alimentos em Chicago é controlada por grandes multinacionais que não estão nada interessadas na sobrevivência da humanidade, mas no aumento dos seus lucros. “Daí vem os transgênicos, ultraprocessados, daí vem esse verdadeiro tsunami de agrotóxicos, de envenenamento dos alimentos para que eles sejam produzidos mais rapidamente e, ao mesmo tempo, para que os camponeses de agricultura familiar não tenham mais sementes reprodutivas e sejam obrigadas a consumir transgênicos. Temos que fortalecer a luta contra os transgênicos e os agrotóxicos", defendeu.

Também destacou o papel do Movimento Sem Terra no trabalho desenvolvido em Cuba e também por ser um dos produtores de orgânicos mais expressivos da América Latina.

Importância da arte, da ciência e da ética para construção de um Brasil de Fato 

Indagado sobre a arte, ciência e ética para a construção de um Brasil de Fato, Frei Betto afirmou que a arte é essencial ao ser humano. "Em tudo nós fazemos arte, ainda que não tenhamos consciência disso. Isso é fundamental para expressão do ser humano", afirmou.

Para ele a ciência é fundamental porque ela permite o conhecimento da natureza. Contudo, ponderou que a ciência vem sendo manipulada abusiva e criminalmente pelo capital. Já sobre a ética destacou que o equilibro do ser humano depende de duas palavras, ética e estética: a estética no plano da arte e a ética no plano dos valores, atitudes, comportamentos.

"A ética é fundamental para criarmos uma civilização onde a diversidade seja respeitada, as diferenças não sejam transformadas em divergências, em que a pluralidade de opiniões, criatividades, de sistema de governo sejam valorizadas. E que sejam radicadas todas as formas de opressão, de discriminação e preconceito", disse.

Por fim, frisou que a humanidade, infelizmente, não está na era do antropoceno, como a maioria proclama, mas sim na era do capitoloceno, a era da predominância do capital. "O capital tem prevalência sobre todos os direitos humanos, sobre todos os valores da ética e nada pode ser feito que possa afetá-lo. Enquanto não superarmos o sistema capitalista será muito difícil celebrarmos o casamento desse belo triângulo”, encerrou.  

Os livros do Frei Betto podem ser adquiridos em sua página

Assista ao programa na íntegra:


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

Edição: Marcelo Ferreira