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A Crítica da Economia Política e o problema da política econômica

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A política econômica tem um forte poder de interferir no curso da história

A publicação do primeiro volume de O Capital, obra fundante da Crítica da Economia Política, teve as comemorações de seu 150º aniversário realizadas no ano de 2017. Contudo, Marx, ainda em vida, produziria duas outras edições desse mesmo volume. Primeiro, com a segunda edição em alemão, publicada em 1872 – que neste ano faz o seu 150º aniversário – e outra, publicada em fascículos, no idioma francês, por ele supervisionada, no período de 1872 a 1875.

É um bom tempo, 150 anos: de lá para cá, nações surgiram e deixaram de existir, o modo de produção capitalista consolidou sua presença em praticamente todo o globo, e a sua dimensão financeira adquiriu uma centralidade fundamental.

Se O Capital mantém sua atualidade nos dias de hoje é uma discussão já feita em outros lugares. Pode-se dizer que o núcleo teórico da obra, ou seja, as leis de funcionamento do modo de produção capitalista que foram, de fato, o objeto de estudo de Marx, e não as condições particulares de desenvolvimento do capitalismo inglês – que serviram apenas de ilustração – se mantém exatamente as mesmas.

A forma de se produzir mercadorias, as relações de produção, a definição do valor das mercadorias, a transferência de valor dos elementos do capital constante e do capital variável para o valor final da mercadoria, bem como seu acréscimo em mais-valia, e posterior acumulação, permanecem vigentes, conforme Marx expôs.

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Mas mudaram as condições empíricas em que esse movimento de acumulação ocorre. Por exemplo, o setor de serviços tem hoje um peso maior que o industrial, os mecanismos de transferência de valor se sofisticaram com a evolução do setor financeiro e os Estados passaram a ter um peso relevante na vida econômica.

O que este artigo pretende discutir é apenas um dos muitos temas possíveis de se retomar a partir da Crítica da Economia Política o papel da política econômica. Há espaço para essa discussão a partir de O Capital ou isso seria uma posição reformista que negaria o aspecto revolucionário de Marx?

Reforma ou revolução           

Um opúsculo que deu bastante destaque a essa possível dualidade foi o livro Reforma ou Revolução?, publicado por Rosa Luxemburgo, em 1899, no seio dos debates do Partido Social Democrata alemão (SPD). Na época, o SPD poderia ser considerado o primeiro partido de massas do ocidente e dispunha de significativas forças de mobilização. No contexto da obra, Luxemburgo confronta suas posições às de Eduard Bernstein.

Para Luxemburgo, Bernstein acreditaria na não necessidade da revolução e que os problemas do modo de produção capitalista poderiam ser resolvidos com seu desenvolvimento, com a separação da propriedade e do controle das empresas que já estava em curso com o crescimento das sociedades por ações, com a evolução das cooperativas e com o papel do crédito. Em suma, para Bernstein, as reformas seriam suficientes.

Contra isso, Rosa Luxemburgo dizia que era preciso e possível que o SPD avançasse no sentido da superação das relações de produção capitalistas, já que as reformas realizadas no interior da sociabilidade capitalista necessariamente seriam limitadas, e, conforme interpretaria István Mészáros, décadas mais tarde, metabolizadas pelas relações de produção capitalistas. Assim, embora Luxemburgo ainda aprovasse a existência de reformas sociais, fazia questão de destacar seus limites, especialmente para a conjuntura a que fora contemporânea.

Isso produz rebatimentos no debate acerca da política econômica, a partir da Crítica da Economia Política, especialmente se se parte da perspectiva de que a realização de políticas econômicas progressistas – a depender do entendimento, reformas – seriam mecanismos de apaziguar ânimos e que uma suposta revolução fadada a acontecer estaria sendo adiada. Este artigo não encampa essa visão.

Em primeiro lugar, porque uma tal interpretação pode não fazer justiça com o que Marx escreveu: ele comemorava, por exemplo, cada avanço positivo na legislação trabalhista de seu tempo. Em segundo lugar, não há garantia nenhuma que tal revolução ocorresse na ausência de reformas. E, em terceiro lugar, há sérios limites éticos em posições de esquerda que esperam que a penúria presente de uma parcela significativa da população seja o elemento catalisador de uma transformação social. Felizmente, tais posições são minoritárias.

O que fazer com o tema da política econômica em sua relação com o pensamento econômico de Marx?

Marx certamente não lidou diretamente com o tema, porque não se podia falar em política econômica no sentido moderno em seu tempo. Os temas mais próximos com os quais lidou foram os debates sobre as leis dos grãos (leis protecionistas que mantinham viva a ineficiente produção agrícola da aristocracia rural britânica, enquanto as fronteiras da agricultura dos Estados Unidos eram desbravadas com uma produtividade muito maior), com aspectos institucionais do sistema monetário inglês e com a legislação trabalhista. Marx emitia opiniões sobre as consequências de tais rearranjos e, nesse sentido, pelo menos na perspectiva de observador e não de proponente, a política econômica teve algum espaço em sua obra como objeto de análise.

Mas, e a política econômica como proposição? É possível se extrair de O Capital proposições de política econômica? Ou isso seria enxugar gelo, já que as forças concentradoras de riqueza do capital tenderiam a concentrar os recursos nas mãos da classe dominante mesmo na presença dessas intervenções?

É comum a atitude de, entre os estudiosos de Marx, que não se furtam à proposição de políticas econômicas no interior do capitalismo, que se recorra à obra e às ideias de John Maynard Keynes e a autores pós-keynesianos. Keynes era um autor genuinamente preocupado com as consequências do funcionamento do capitalismo. Por isso, desenvolveu uma análise original que foi capaz de enxergar que o sistema econômico é eivado de ineficiências, entre as quais a sua incapacidade quase crônica de empregar eficientemente os fatores de produção, em particular a mão de obra.  Esse diagnóstico era a base para que propusesse medidas de políticas monetária e fiscal para que a demanda efetiva se elevasse e que o investimento fosse recuperado em uma economia, o que traria um nível de emprego mais elevado dos fatores de produção e de mão-de-obra.

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Paul Singer, em seu Curso de Introdução à Economia Política, sugere o seguinte expediente: que as análises de longo prazo fossem baseadas na Crítica da Economia Política, e que a análise de curto prazo, e por consequência, proposições de política econômica, fossem baseadas em Keynes. Michael Heinrich, eminente biógrafo e comentarista de Marx, entende, além do mais, que Marx e Keynes não possuem o mesmo objeto de análise, porque Marx estaria analisando o capitalismo com vistas à sua superação, enquanto Keynes, com vistas à sua conservação.

Este artigo sugere que esse olhar seja questionado por quem lê e considera as descobertas científicas de Marx. Deve-se ter uma agenda de pesquisa de política econômica a partir de Marx. Não porque Keynes não seja um autor do qual se possa aprender muito. Pelo contrário, ele deve ser seriamente considerado, mesmo que em certos círculos de esquerda seja considerado como, no máximo, um autor de uma suposta burguesia esclarecida.

Deve-se lembrar aqui, o óbvio: Marx não escreveu O Capital lendo autores marxistas. Mas, mais importante do que isso, é que Marx era um exímio analista da sociedade capitalista. Toda política econômica depende de uma análise diagnóstica prévia. E toda análise que tenta prever os resultados de uma política econômica se assenta na mesma metodologia que embasou o diagnóstico a ela anterior. Por isso, uma teoria que tenha um potencial de diagnóstico bastante elevado, como é o caso da Crítica da Economia Política, fundada por Marx, pode ser sim a base para a formulação de políticas econômicas e a sua avaliação.

Até o momento, a temática dos detalhes da política econômica é uma das menos presentes em publicações acadêmicas e em meios aos círculos que se inspiram pela análise de Marx. Mas, se a política econômica é parte do modo de produção capitalista, é correto que o debate em torno dela seja interditado? Marx, repita-se, era um analista do capitalismo.

Mesmo que se considere que a formulação de políticas econômicas possa ser um ato de enxugar gelo, e que seus resultados são anulados no longo prazo pelo funcionamento do modo de produção capitalista, o prazo desse processo não é definido a priori. Nesse intervalo, as condições mínimas de sobrevivência de uma grande parcela da população estão em jogo. A política econômica tem um forte poder de interferir no curso da história e por isso trazê-la ao debate é fundamental para que a Crítica da Economia Política continue e se torne ainda mais relevante.

Elton Rosa é doutorando em economia pelo Cedeplar/UFMG, membro do Instituto Economias e Planejamento

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Larissa Costa