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Eleições 2022: o padre de festa junina e o deboche da cara de um país inteiro

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Reprodução - TV Globo
O debate teve um perdedor: o eleitor

O tão esperado debate na Rede Globo, sempre tão decisivo e marcante em outras épocas da vida nacional, foi a coroação desta realidade paralela e grotesca em  que o Brasil foi mergulhado a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro. Foi um espetáculo triste e grotesco, que certamente levou muitos de nós a rir de nervoso diante de tanta baixaria, tanto nonsense. O aparato de desinformação bem estruturado e de fake news estava ali solidamente representado. O debate foi, na verdade, um tapa na cara de um país inteiro.  

O Brasil tem problemas reais e graves: fome, miséria, endividamento das famílias, desemprego, aumento grande do suicídio, feminicídio, crise econômica, falta de segurança pública, devastação do meio ambiente, corte de políticas públicas. A lista é bem grande. Mas nada disso esteve no centro da discussão na noite.

O formato do debate foi muito ruim, não possibilitou discussões de fato e perguntas de e para atores mais importantes, dando visibilidade muito grande a nanicos sem importância. Não trouxe perguntas de jornalistas, o que seria essencial. Engessou a performance do que está em primeiro lugar. Resumindo, a Globo conseguiu piorar o que já foi ruim no debate da Band. 

Tão marcante em outros momentos da vida nacional, o debate da Globo foi um espetáculo grotesco e lamentável

O primeiro bloco foi o melhor, quando os candidatos se enfrentaram de fato e Lula pôde ter algum tipo de confronto com Bolsonaro – que começou a perder as estribeiras e ficou falando alto do lugar onde estava sentado. Os pedidos de direito de resposta dominaram a cena, e a Globo estava de boa vontade com Lula, cedendo a quase todos os pedidos. No terceiro bloco, Bonner, com cara de “o que estou fazendo aqui”, perdeu a paciência com o padre fake, interrompeu a pergunta e deu uma reprimenda forte em Kelmon Kelson Kelvin, que não respeitava as regras do debate.

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Os outros blocos foram pachorrentos e com cenas de um espetáculo bem ridículo. 

Num primeiro momento, pensei no debate como um exemplo do realismo fantástico de Garcia Marques. Mas me corrigi rapidamente – aquele espetáculo tosco nada tem da deliciosa construção do escritor colombiano. Ele foi, na verdade, o resultado tosco de uma realidade paralela tosca em que o bolsonarismo mergulhou o Brasil. E também é fruto da leniência das instituições e do sistema midiático, que possibilitaram a emergência dessa realidade em nome do antipetismo. Foram cinco blocos de um lastimável espetáculo.

Vou comentar brevemente a performance dos candidatos.  

Lula

Teve bons momentos, mas foi engessado pelo formato do debate e pela agressividade de todos os candidatos contra ele. No embate possível com Bolsonaro e depois com o padre fake, ele apontou temas importantes, como a quebra do sigilo de 100 anos que Bolsonaro impôs e as rachadinhas da família. Mas foram poucas as oportunidades para falar de fato. Um momento ruim foi o bate-boca com o padre fake – de fato, Kelmon é um cínico provocador, perfil da cartilha de Kim Kataguiri e do MBL, e conseguiu tirar Lula do sério. Não é fácil mesmo para alguém com a estatura política do ex-presidente ser chamado de ladrão por um laranja daqueles. Mas foi ruim o bate-boca, e Lula não deveria ter embarcado.   

Ciro Gomes

O “pote até aqui de mágoa” está de fato cansativo. Ciro Gomes desempenhou um lastimável papel no debate ao se tornar um braço bolsonarista para criticar duramente o ex-presidente Lula. Em suas perguntas, Ciro bateu na tecla da corrupção ligada somente aos governos petistas e evocou moralismo e moralidade. Estava tão fora de si que afirmou, lunaticamente, que uma de suas propostas é privatizar o Banco Central! Acredito que selou, ali, sua carreira política – pelo menos no formato que vimos até então, de aproximação com pressupostos de centro-esquerda. Ciro, talvez, se bandeie logo e definitivamente para a direita. 

Padre Kelvin, Kelson, Kelmon

Um laranja desqualificado e cínico arranjado pelo bolsonarismo para atacar Lula. É um absurdo que uma figura depreciativa como aquela – que certamente se formou pela cartilha do MBL, de Kim Kataguiri, e pelos cursos de Olavão – tenha a possibilidade de estar num debate como o da Rede Globo apenas e tão somente para desestruturar o ex-presidente Lula por meio de provocações e insinuações. É um absurdo que ele não tenha sido expulso do debate. Kelmon provocou Lula cinicamente e sem qualquer pudor. Estava ali para isso, sendo um candidato laranja de Bolsonaro. E todo mundo, de novo, fingindo que uma aberração como aquela era normal. Pra mim, o padre de festa junina não é motivo de piada, nem de riso, nem de meme – ele é motivo de lamentação e preocupação. A naturalização de absurdos é sempre perigosa.

Bolsonaro

Fez, de novo, o que sempre faz desde que se candidatou à presidência: mentiu descaradamente. Insultou a Globo na casa da Globo e teve a pachorra de, novamente, trazer à cena a fake news da história, o kit gay. E fugiu do embate com Lula. Bolsonaro não confrontou o ex-presidente e fugiu de todos os embates previsíveis porque tinha o candidato padre laranja pra fazer os ataques. E ele então estava livre pra fazer ataques sem o confronto – chamando Lula de ex-presidiário, ladrão. Manteve também a tradição de atacar mulheres e a competência das mulheres, sobretudo nas respostas a Soraya. Mas não se excedeu como no debate da Band. É lamentável e cada vez mais surreal olhar para aquela figura e pensar que foi eleita para a presidência. De novo: culpa da leniência das instituições e do aparato midiático que sustentou a ideia do antipetismo. 

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Simone Tebet

Seguiu o script e fingiu que pensa no Brasil. Falou algumas propostas, teve alguns poucos embates com Bolsonaro e conseguiu dar o seu recado. Não trouxe nada surpreendente ou grande novidade, mas conseguiu se colocar, ou se projetar, como uma voz coerente, que quer discutir propostas etc. Ficou de fato essa imagem. Está se firmando como nome importante no cenário político.

Soraya Thronicke

Um embuste que fala bem e tem tiradas engraçadas. A função da candidata do União Brasil no debate da Globo foi achincalhar Kelvin Kelson e trazer tiradas ótimas sobre ele. Também tentou alguns movimentos com Bolsonaro, até ser encurralada por ele na história do pedido de cargos. Mas conseguiu apontar algumas coisas, até da gasolina batizada do Posto Ipiranga.

Felipe D’Ávila

Felipe D’Ávila, que é bastante semelhante ao personagem da trilogia Jogo vorazes, o apresentador caricato, representa bem o que é o tal “Novo” – um partido que surfa na onda da antipolítica, não faz nada, não apresenta nada e arruma vários candidatos engomadinhos e idiotas para a disputa política. A dobradinha forçada com Simone Tebet, “vamos discutir o Brasil”, ficou risível. Lula soube responder duramente a ele as provocações sobre corrupção, mostrando quem de fato tem experiência e conhece o país para além dos bairros ricos das capitais – que é por onde o Novo transita.    

O debate teve um perdedor: o eleitor

No mais, ninguém se saiu bem de verdade no tão esperado debate da Globo. Ninguém saiu ganhando. Mas o debate teve um perdedor importante: o eleitor brasileiro, que chega a 2022 enclausurado por um sistema de desinformação bolsonarista que cria um mundo paralelo tosco.

No mais, senti uma saudade imensa de quando assistia aos debates com Brizola extrapolando o tempo e Marilia Gabriela alertando “governador, governador! o seu tempo acabou”. Com Mario Covas falando um tucanês legítimo e até bom de ouvir. Ulysses Guimarães falando da Constituição e da democracia. Freire naquela fala toda articulada e com camisa de seda rosa compondo o terno. Lula no embate com Brizola, e até Enéas para dar o tom divertido.

O debate de ontem não teve nada disso, foi tosco e lamentável apenas. 

Eliara Santana é Jornalista e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

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Edição: Elis Almeida