Minas Gerais

Coluna

A batalha pelo cotidiano

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"Ainda somos, os progressistas, uma força política consolidada, que preenche a razão, o imaginário, a aspiração de futuro e alguma parte da paisagem da sociedade brasileira." - Foto: @blablabuk
Sem disputarmos os símbolos, a paisagem e os espaços de vivência do comum, nossa condição vai piorar

Se a extrema-direita é uma força consolidada no país (muito organizada e caracterizada por um movimento estético amplo), nós, progressistas (em amplo espectro), também somos.

Mesmo lutando contra a organizada máquina de desinformação da extrema-direita e a máquina governamental por ela controlada (com orçamento secreto alimentando campanhas de candidatos ao Legislativo alinhados ao seu projeto e terrorismo institucional), por pouco, menos de 2% dos votos válidos, não levamos a eleição para a Presidência em primeiro turno.

Por outro lado, perdemos batalhas importantes, como o governo de Minas Gerais, as composições da Câmara Federal e do Senado, que agora passam a ter um percentual de representantes ainda mais relevante vinculado ao projeto da extrema-direita.

Atualmente, há um equilíbrio de forças na disputa entre os projetos de país da extrema-direita, forjados como resultante do neoliberalismo em crise reprodutiva, e do progressismo, também com uma certa crise de identidade, tímido na defesa daquilo que lhe é mais avançado, a luta pela justiça nas relações entre serem humanos.

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Apesar de tudo, reafirmo, e faço questão de ser repetitivo. Ainda somos, os progressistas, uma força política consolidada, que preenche a razão, o imaginário, a aspiração de futuro e alguma parte da paisagem da sociedade brasileira.

Uma vez verdadeira a afirmação acima, apresento a seguinte reflexão:  é importante termos clareza quanto a guerra que estamos travando.

O primeiro passo é reconhecer que é uma guerra

A extrema-direita não quer apenas nos enquadrar ou nos tornar tímidos na defesa de nossos objetivos. Ela quer nos eliminar. Como resultante do neoliberalismo, a extrema-direita carrega consigo o aprendizado de sua própria crise. As crises da reprodução capitalista, no limite, fazem o calo apertar, a estrada ficar estreita, exigem medidas drásticas e intensificação da exploração de alguns seres humanos sobre a grande massa populacional planetária (e nacional, para ficarmos apenas no Brasil).

A “Ponte para o futuro” do binômio governamental Temer/Bolsonaro nada mais foi do que um projeto de aumento da exploração e tentativa de condenação perpétua do Brasil à condição de nação periférica, simplesmente porque alguns dos nossos endinheirados, leia-se varejistas, especuladores fundiários, banqueiros (gente pequena do capitalismo mundial), conseguem ganhar dinheiro fácil entregando nossas riquezas para o capital externo e pisando na garganta dos brasileiros.  

O segundo passo é reconhecer que a exploração tem limite

O limite é a própria vida. Sem a vida do explorado não há exploração. Mas o capitalismo nunca foi um mecanismo racional. A lógica que o move é do “sempre um pouco mais”. Os arrefecimentos da exploração não são resultantes da estratégia do explorador, mas das tensões geradas pela luta dos explorados.

Fui um tanto longe aqui, mas para lembrar que nós, progressistas, defensores da ciência, da razão, da construção coletiva do belo, não estamos lutando contra um inimigo que opera com as exatas mesmas armas que nós, não opera apenas na racionalidade, porque a racionalidade não lhe é de todo conveniente.

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Nosso inimigo é tosco e opera de maneira racional a irracionalidade. É ardiloso. Aplica inteligência para alimentar sua própria loucura. Nosso inimigo, a extrema-direita (parida contemporaneamente pelo neoliberalismo), opera afetos, o subjetivo, a dimensão semiológica da vida. Ele oferece uma positividade ao corpo social, uma forma das pessoas se coletivizarem fora do campo da racionalidade.

Nosso inimigo constrói uma paisagem, em sentido geográfico, que lhe é favorável, que estimula o desejo das pessoas, que orienta um estilo de vida. Nosso inimigo nos incute o medo. E o medo trava nossa ação ou nos faz esvaziar alguns campos de batalha.    

Nós, por outro lado, não estamos tão organizados quanto. Trabalhamos, majoritariamente, inclusive na atual disputa eleitoral, no campo da negatividade. Queremos desconstruir nosso inimigo com racionalidade. Essa é parte de nossa força e não defendo que devemos abrir mão disso. É preciso sim alertar para os aspectos materialmente objetivos da vida.

O Brasil passa fomes, nossas riquezas estão sendo roubadas à luz do dia, nosso povo, objetivamente, sofre. Mas essa forma de atuar não será suficiente. Pode até ser para o objetivo eleitoral de ganharmos a Presidência e reafirmar nossa força, ainda que na bacia das almas (não faremos nenhum grande estrago nas forças da extrema-direita, essa é a realidade).

Mas até onde vamos? 

Entendo que, em diversas regiões do país, estamos perdendo uma batalha estética e paisagística. Estamos perdendo os espaços (em termos de volume e conteúdo) do agir comum. Em Belo Horizonte, onde vivo, por exemplo, os botecos (espaços centrais da vida social belo-horizontina, fato reconhecido nacionalmente) foram tomados por uma onda de verde e amarela, de pessoas com olhares raivosos, intimidadores e soberbos.

Carrões circulam pela cidade com suas bandeirinhas do Brasil, nessa ressignificação tosca do nacional que a extrema-direita tenta nos impor. Raras são nossas bandeirinhas, solitárias que só, pela cidade. Às vezes nos deparamos no mercado com um dos nossos, de peito estufado, ostentando um adesivo, mas com olhar apreensivo. Esse efeito não é pouca coisa. Uma das principais táticas de guerra é incutir o medo no inimigo. É fazê-lo ter dúvida de suas possibilidades de vitória, entrar em sua mente.

É preciso lembrar que as pessoas, na sociedade de consumo guiada pela solidão das relações via algoritmos, anseiam pela experiência coletiva ainda que seja para consumir mais ou dizer que a bandeira não será vermelha. No fundo, querem mesmo é uma bandeira, um sentido, viver o comum em algum coletivo, seja na igreja, seja no grupo de boteco.

Aliás, esse sempre foi o que nós, progressistas, defendemos, como condição para a construção da mudança que almejamos. Estão roubando a experiência do comum de nós, canalizando-a para longe da racionalidade e da mudança efetiva da realidade. E o fazem com forte organização e multiplicidade institucional, via igrejas, espaços de lazer, enfim, no cotidiano, com uma carga emocional e afetiva tremendamente poderosa.

O que acho: temos que entupir o cotidiano com nossos símbolos e nossa gente, tomar os botecos, as praças, as padarias, os shows, os carros e ônibus de vermelho e adesivos, não só para pedir voto, mas para vivermos sem medo. Precisamos mostrar um outro jeito de dar sentido à experiência coletiva. Jeito esse que já sabemos qual é, temos história nisso.

A disputa do cotidiano é decisiva, ao menos para criarmos e/ou aguçarmos a dúvida na cabeça das pessoas (dos indecisos e dos que estão ao lado da extrema-direita). Haverá provocações e violência. É assim em uma guerra contra a extrema-direita. Mas é o país, o futuro, o cotidiano em jogo. Sem disputarmos os símbolos, a paisagem e os espaços de vivência do comum, nossa condição vai piorar. Isso no que resta de tempo de disputa eleitoral e no daqui para frente. Não é pouco.

Weslley Cantelmo é economista, doutorando em economia pelo Cedeplar/UFMG, membro fundador e presidente do Instituto Economias e Planejamento e do Sindicato dos Economistas de Minas Gerais.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Larissa Costa