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Crônica | A loteca

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Marcelo Camargo - Agência Brasil
Seu primeiro trabalho foi engraxate no centro da cidade, perto da Rodoviária e do baixo meretrício

Sua vida sempre foi um sufoco danado. Nasceu num barraco apertado, sujo, pequeno e feio. Num bairro sem praças, sem esquinas, onde não dava pra sonhar. Era o mais novo de uma família de treze irmãos. A maioria dos seus irmãos morreu de fome. Sua mãe morreu na porta de um hospital público sem um atendimento digno. Seu pai era dito na quebrada como um canalha profissional. Nunca teve um trabalho fixo e renda suficiente para sustentar a família. Era um apontador do jogo de bicho. Sem qualquer compromisso com nada.

Seu primeiro trabalho foi de engraxate no centro da cidade, perto da Rodoviária e do baixo meretrício. Ele entrava e saía pela porta de trás do ônibus sem pagar passagem. Foram anos assim. Aprendeu todo tipo de trambique para sobreviver. Não era flor que se cheirasse. Arrumava brigas com mendigos e meninos de rua.

Uma vez, voltando para casa depois de um dia exaustivo de trabalho e pequenos corres pela cidade, viu seu pai, irmãos, o sofá velho, o fogão e o gás de cozinha jogados pra fora do barraco. Eles não pagavam o aluguel já fazia quase um ano. O dono do barraco era o “dono” da quebrada e não queria vê-los mais pelas redondezas.

O tempo foi passando, ele virou motorista de ônibus, um pai de família exemplar e um grande companheiro para a esposa. Chegava todos os dias de tardezinha com alguma coisa na mão para a mulher e filhos. Geralmente, era pão, biscoito, leite, frutas, chocolate, bolo e não podia faltar sua cervejinha sagrada.

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Sempre fazia sua fezinha no jogo de bicho e a loteca de cada dia. Colocava fé que iria ganhar e ficar rico. Seu sonho era ver seus filhos estudados e a mulher com uma vida de “rainha”.

Numa manhã de segunda-feira, passou na loteca e fez só um cartão de aposta. Um prêmio milionário. O maior prêmio do ano. O sorteio seria na quarta-feira, antes do jogo Brasil e Tchecoslováquia. Ele já estava ansioso para o jogo, o sorteio e o churrasco que iria fazer na sua casa. Já tinha comprado cerveja, carvão, asa de frango, coraçãozinho, picanha e costela. Pediu ao filho para acender a churrasqueira mais cedo.

Naquela quarta-feira, fez tudo que fazia sempre, mas com uma ansiedade anormal. O trocador sentiu e viu que ele estava muito diferente. Errou várias paradas de ônibus e se esqueceu de abrir a porta para os passageiros descerem. Logo ele que era um motorista bem cuidadoso e perspicaz. Na última viagem do dia, bandidos entraram armados no ônibus e assaltaram os passageiros. Queriam botar fogo no ônibus e tocar o terror.  Ele foi tirar satisfação e levou dois tiros no peito. Morreu na hora. 

Sua mulher, filhos e amigos já estavam preocupados, ele nunca atrasava. Ainda mais com sorteio, churrasco e jogo da seleção. O primeiro tempo já havia acabado entre Brasil e Tchecoslováquia e nada de ele ter chegado. O jogo acabou com goleada do Brasil, com dois gols do seu ídolo maior: Zico. Só que a preocupação aumentava com o passar do tempo. Enfim, chegou a notícia do seu paradeiro. Ele foi assassinado dentro do ônibus na sua última viagem. Foi enterrado como herói pela sua comunidade.

Passado mais de um mês do enterro, começou a correr uma fofoca no bairro de que alguém tinha ganhado na loteria. Na lotérica do bairro, havia uma faixa: aqui saiu o maior prêmio da Mega-Sena até hoje. Quem seria o sortudo ou a sortuda? Fizeram até um bolão com o nome das pessoas do bairro para o provável ganhador. Ninguém nem imaginava quem seria aquela pessoa de tanta sorte.

Um dia, sua mulher, arrumando a casa e as coisas dele, viu num cantinho de uma velha gaveta um bilhete de loteria. Chamou o filho mais velho, mostrou-lhe o bilhete e pediu que ele fosse à lotérica para conferir.

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Qual foi a surpresa da família? O bilhete era o premiado de que todo mundo falava. Saiu até no programa do Fantástico uma reportagem sobre o prêmio esquecido na Caixa Econômica Federal. Ele foi assassinado no dia em que ganhou um prêmio milionário na loteca. Ele cumpriu o que prometeu pra mulher: “Amor, prometo que vocês não passarão o sufoco que passei na vida. Juro pela minha mãe”.

E assim foi sua profecia.

Edição: Elis Almeida