Rio Grande do Sul

Coluna

Romper as cercas da ignorância

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"Apesar do momento de justificada alegria, não podemos nos permitir mais de que poucas semanas de relaxamento distraído pela sensação de vitória. Os ovos das serpentes estão por aí" - Charge: Jota Camelo
O que houve com aquelas universidades que promoviam consciência social e humanismo?

Com a bela vitória de todos os brasileiros democratas, sob orientação de Lula, e com as especulações que se desenham em torno de seu futuro governo, me ocorreu de olhar em volta. E assim, percebi o óbvio. Se passa por aqui algo similar ao que ocorreu nos países vizinhos.

Espetacular, pela dimensão do Brasil, pelas possibilidades de articulação que se desenham, mas também assustador. Se de um lado, o resultado eleitoral surge como um freio gigante de possível restrição ao ascenso do fascismo, de outro, como sabemos, os derrotados não se pensam assim, e babam de ódio. E estão armados. E não possuem escrúpulos.

Portanto, vivemos um momento de justificada alegria, onde uma brisa de ar fresco nos renova as energias e coloca este continente a caminho de sua reconstrução. Mas, e sempre que há um “mas”, a frase seguinte merece atenção..., não podemos nos permitir mais de que poucas semanas de relaxamento distraído pela sensação de vitória. Os ovos das serpentes estão por aí, e a riqueza deste território, em água, solos férteis, povo cordato, tem seu porém na abundância de fantoches, de iludidos, bem como no descaramento de elites vendidas.

Nada disso pode ser subestimado. A esquerda democrática ocupa governos em toda América Latina, e os resultados do Brasil são cruciais para o futuro do continente, é certo. Mas o que isso indica, de concreto, em termos de acesso ao poder?


A esquerda democrática ocupa governos em toda América Latina / Reprodução

De saída, percebemos ser equivocada a suposição de que ao mudar o governo nossas riquezas passam ao controle de lideranças progressistas, que poderão orientar seu uso de forma a patrocinar o fortalecimento de processos humanizadores. Longe disso. O sonho de soberania, para ser concretizado em todas aquelas dimensões em que nos falta, exigirá enfrentamento de uma corrupção sistêmica estabelecida em cinco séculos de rapinagem. Trata-se de negociações que permitam a aceitação de pequenos avanços, como o possível; de contenção de reivindicações justificadas, com argumentos que expliquem os retardos, e de enfrentamentos em espaços de discussão públicas e secretas.

Vejamos, por exemplo, o imaginário dominante a respeito da tal vocação agrícola nacional e sua conexão com reservas minerais a serem rapinadas e a cultura de subserviência vira-latas, com que desprezamos a nós mesmos e que contaminam de forma sistêmica os poderes e as instancias públicas. Neste contexto, resulta evidente que a composição dos ministérios, em toda América, que nos mapas e sonhos começa a aparecer “avermelhada”, exige que avancemos a passos seguros, sim, mas talvez lentos e com certeza repletos de cautela.

Vejam um pouco daquilo que entendemos por cultura e vocações determinantes do inconsciente coletivo. Neste espaço acreditamos que as universidades são instâncias nobres, aplicadas à construção de conhecimentos permitem estender e qualificar a vida de todos. E assim deve ser. Entretanto, é exatamente dali que emergem os formadores de opinião que tradicionalmente justificam o recuo de nossos países à condição de colônias exportadoras de matérias primas de baixo valor.

O que houve com aquelas universidades que promoviam consciência social e humanismo? O que justificou sua transformação nestes mecanismos homogeneizadores de corações e mentes, que geram “técnicos” e “cientistas” claramente comprometidos e até ansiosos em se notabilizar como quadros justificadores, difusores e enaltecedores de tecnologias que nos escravizam? Não tenho resposta, mas posso explicar melhor a questão em si.

Nossas universidades, em maioria, estão a serviço de interesses de mercado que em boa parte contrariam necessidades da nação e que, para isso, formam legiões de feitores conectados aos novos formatos de escravidão.

Em outras palavras, ali se produzem formuladores de conceitos e discursos aplicados à desorientação da consciência coletiva, onde, para ficar em um exemplo, o agronegócio e suas supostas biotecnologias seriam essenciais para colocar nosso país em posição de vanguarda, enobrecida pela responsabilidade de garantir alimentos para o mundo. Resulta que, com esta “consciência”, os novos presidentes deverão acolher, entre seus ministros, representantes daqueles interesses.

No entanto, o que ocorre? As biotecnologias detidas pelas transnacionais e este modelo de agronegócio servem aos interesses nacionais? Elas claramente se voltam a cultivos de exportação que dependem do uso de agrotóxicos em lavouras de larga escala. As modificações (tolerância à herbicidas e resistência a insetos) dedicam-se a combater alguns “adversários” das plantas de lavoura e, não sendo desenvolvidas para expandir a produtividade, não se prestam a isso. Mas ampliam os custos. E assim reduzem a rentabilidade por metro quadrado e convocam expansões na área cultivada.

Contam, ademais, com estímulos governamentais na forma de créditos especiais, seguros agrícolas, isenções de impostos e perdões de dívidas que acabam reduzindo o espectro de riscos tão importante nas economias de mercado. Com tais distorções, a expansão das áreas em cultivo para exportação se dá sobre as áreas antes ocupadas com a oferta de alimentos.

Resultado: inflação, desvalorização da moeda nacional e ampliação de ganhos para exportadores, que recebem em dólares. Com a fome avançando e sem produção nacional para conter seus dramas, a segurança alimentar passa a ser garantida por importações. E estas são pagas com recursos obtidos através das exportações de itens que levaram à necessidade daquelas importações. Justifica-se, renovado, o discurso golpista de Delfim: exportar é o que importa.

Enfim, pela falta de tempo e espaço, vale concluir chamando atenção para recente seminário promovido por universidade mexicana. No “Seminario Interinstitucional la Revolución Verde 80 años después: una mirada global", aquele tema que parecia consensual na esquerda, ressurge em seus coloridos originais. Desconsiderando efeitos colaterais e inadequação das tecnologias ali envolvidas às necessidades da maioria de nossos povos, alguns cientistas “modernos” enaltecem a Revolução Verde, apontando-a como “porta para acesso ao conhecimento”. Naquela visão a ciência que sustenta o agronegócio que hoje domina nossos governos teria permitido superar o drama da fome e estaria encaminhando a produção de novos conhecimentos no campo das biotecnologias de edição gênica e digitalização da vida.

Trata-se de ignorar, ou esconder o fato de que nossa suposta “vocação” ao agronegócio renova processo de espoliação colonialista a que nossas elites insistem em nos aprisionar. Ademais, a ênfase para exportações de grãos geneticamente modificados, que as bancadas do agro e seus representantes defendem, acelera a privatização de recursos e a contaminação de solos e águas. Mais grave, ao abraçar tecnologias sobre as quais não temos controle, os governos democráticos que retornam ao controle da nação contribuirão para reforçar processos que atuam em oposição a sistemas democráticos, e com isso ajudando a chocar os ovos da intolerância e do fascismo.

E como isso entra em jogo, neste momento em que estamos diante de possibilidades de enfrentamentos e articulações inéditas?

Aparentemente, através das negociações que determinarão prioridades de governo, poderemos exercer papel crucial, desde mobilizações de rua, alertando para pontos inaceitáveis. Os governos democráticos devem se exercer pelo povo e para o povo, sendo este um princípio do tipo que se defende e não se negocia.

Como diz a Canção da Terra, de Pedro Munhoz, é preciso “romper as cercas da ignorância, que produz a intolerância, terra é de quem plantar...” Veja também a entrevista com o músico no Arte, Ciência e Ética em um Brasil de Fato.

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko