Pernambuco

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Defender a democracia e amar o futebol

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Brasil faz sua estreia hoje na Copa do Mundo no Catar contra a Sérvia - Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Ignorar a maior festa do maior esporte do universo é difícil

Enquanto eu me sento pra escrever este texto, o jornalista Victor Pereira relata, nas redes sociais, que testemunhou a polícia do Catar pegar uma bandeira de Pernambuco e pisoteá-la. As autoridades do país-sede da Copa de 2022 a haviam confundido com uma demonstração de apoio à comunidade LGBTQIA+, o que é proibido naquele lugar. Nada mais simbólico para eu poder falar do quanto é interessante que justo neste ano de tantos perrengues e maluquices a gente esteja agora assistindo a um Mundial de futebol. Em novembro. No Catar.

É bem verdade que a camisa da Seleção tá sem moral. Mais associada a atos antidemocráticos e presepadas protopatrióticas do que a gols e troféus, a ‘amarelinha’ da CBF hoje é mais fácil ser encontrada na frente de um quartel do exército do que na frente de um telão numa festa animada. Mas a criatividade tá rolando solta e já tem tanta camisa piratona bonita que não vai ser por isso que alguém vai deixar de torcer.

Dizer que a seleção é “a Pátria de chuteiras”, como escreveu Nelson Rodrigues, não faz mais tanto sentido. Mas ignorar a maior festa do maior esporte do universo é difícil. Registre-se: o mais querido desporto do planeta e provavelmente o mais corrupto. O ludopédio, como velhos cronistas rabiscavam, é pleno de contradições que despertam ainda mais paixões. Que outra modalidade permite que um time jogue melhor o tempo inteiro e perca no final? Pois é. Por menos que a gente queira, é impossível não se interessar pelo que está acontecendo agora no Oriente Médio. Se prestar atenção direitinho, tudo que tem no mundo está ali.

A bola chegou ao Catar às custas de muito dinheiro nos bolsos dos mandachuvas da Fifa. O episódio foi até gatilho para uma investigação que derrubou quase todo mundo na maior federação esportiva do mundo. Agora, dentro de estádios bilionários, construídos sobre o sangue e os corpos de gente muito pobre, os melhores e mais bem pagos jogadores dos maiores times do mundo têm corrido atrás de glória.

A Copa nem começou direito e já tem goleadas da Inglaterra e da França e derrota abiscoitante da Argentina. Também já teve quebra de tabu. Foi a primeira vez na história de todas as copas em que a equipe representante do país-sede perdeu a partida de abertura. Jogando pelo Equador, o atacante Valencia, negro, camisa 13, meteu dois gols nos donos da casa, que estão até agora procurando a bola. A coisa mais linda do mundo é torcer pelo sucesso de um Mbappé, filho de imigrantes, ou de um Richarlison, que passou fome na infância e hoje dá alegria a milhões de pessoas no mundo inteiro.

Aqui e ali eu estico um rabo de olho pra alguma partida. O show dos gramados contrasta com a morgação nas arquibancadas vazias. Repórteres tentam encontrar, nas ruas, a velha animação de outras Copas. Em vão. Engraçado, mas não tanto: o país-sede da Copa de 2022 tem características que se assemelham ao que certos extremistas gostariam para o Brasil.

O Catar é um emirado hereditário em que a lei que vale é a xaria, o direito islâmico. Ou seja, a religião é quem manda. O país é comandado pelos ‘homens de bem’, de lá, sem muito espaço para as mulheres. Pra você ter uma ideia, vítimas de violência sexual podem até ser chicoteadas por adultério. Pessoas podem ser presas ou até mortas apenas por serem LGBTQIA+. É muito ruim que isto esteja acontecendo. É muito bom que a gente esteja sabendo que isto está acontecendo. Não dá pra me conformar nem que isso exista lá e, também por isso, dá um certo alívio por termos afastado mais ainda esta possibilidade aqui em nosso Brasil.

Viver é complicado. Então, não se desculpem. Entre protestar contra as maracutaias da Fifa, lutar contra as opressões impostas pelo fundamentalismo religioso, defender sempre a democracia e amar o futebol, seguirei optando pelas quatro opções.

 

Edição: Vanessa Gonzaga