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Crônica. A rua dos cães

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O mundo é grande. O universo é grande. A constelação é grande. A galáxia é grande. E é ali que eles vivem, nesse mundo enorme e nessa pequena esquina de vida - Pedro Carrano
Mais seguro correr atrás das aves do que atrás de carros

Eles chegam perto, às vezes amigavelmente, às vezes demarcando o território. A rua é aberta, o bairro extenso, construído no traçado de uma ferrovia. Região, bolsão, vila, que importa o nome, a quebrada tem curvas, entradas, becos e caminhos tortos de rio. O mapa, dizem, nunca é o território. Nunca, de verdade. Todos como que por instinto sabem desse ensinamento.

Os cães não têm fronteiras, não têm donos e nem cercas, embora delimitam seu espaço e dormem em manilhas deixadas pra eles. Cheias de enfeites. O mundo é grande. O universo é grande. A constelação é grande. A galáxia é grande. E é ali que eles vivem, nesse mundo enorme e nessa pequena esquina de vida. Um grupo de quatro, dois deles formaram um casal permanente e são chamados pelos moradores de Julieta e Romeu.

O casal come junto, busca restos pela via juntos, recebe doações dos passantes, sempre lado a lado. Acompanham às vezes os carrinheiros perambulando pela região sul da capital. Às vezes dormem em marquises separadas, ou na porta da associação de moradores, cuidam e valorizam o espaço, enquanto correm atrás de pássaros à beira do riacho. Mais seguro correr atrás das aves do que atrás de carros. Estão acostumados também aos chutes e ofensas de gente ignorante.

Por outro lado, são prestativos. Abanam o rabo e deixam restos de utensílios na frente das casas que ajudam com comida. Entendem um pouco a lei da troca. A arte do ombro amigo. Parte do seu ser atávico. Não se somam ao uivo pontual de dentro dos quintais das casas. Definiram o seu próprio tempo pra latidos e ganidos.

Às vezes a doação não chega. Às vezes não circula um centavo. Às vezes não dá pra comer os ratos. O que não impede, no final do dia, um olhar de alegria no movimento e na velocidade dos carros que passam na avenida.

As doenças já levaram alguns dos velhos camaradas. As ruas dos cães estão mais cheias de pessoas novamente. As chuvas sem coordenação arrastam quase tudo, agora quase toda semana. Julieta deixou as ruas, recebeu adoção ou voltou para a velha família. Romeu segue na sua maratona diária, disputando a raspa no fundo da marmita. E muita coisa do que fica são restos do que já não vive: A ferrovia, a casa demolida, o rio já sem nenhuma vida, os velhos nomes e símbolo lá do começo da vila.

E Romeu lança um olhar baixo de expectativa e saudade, já no fim de cada dia.

 

Edição: Frédi Vasconcelos