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Democratização da comunicação é gargalo que não deve ser ignorado por novo governo

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"Padrão de cobertura é muito importante na medida em que destaca o protagonismo coletivo" - Foto: Rafael Villas Bôas
Que a democratização da comunicação seja reconhecida como elemento da estratégia política

No dia 8 de dezembro de 2022 foi realizado um ato em frente ao Ministério da Educação, convocado pelos estudantes da Universidade de Brasília, contra os cortes do governo federal à educação, em particular às universidades e institutos federais, que impactam diretamente nas bolsas e na política de assistência estudantil.

Apesar de ser um ato pequeno, para os padrões de atos na Esplanada, foi forte, colorido, organizado, com muitas bandeiras, palavras de ordem, cartazes. Foi também um ato parcialmente vitorioso, pois a manifestação pública da indignação da comunidade acadêmica, junto às posições da Associação Nacional dos Reitores das Universidades Federais (Andifes) e de reitoras e reitores na imprensa resultou na reversão de parte do corte anunciado, todavia, insuficiente para suprir o pagamento de todas as bolsas.

Na imprensa comercial, como sempre, o espaço destinado para as manifestações coletivas é mínimo, fotográfico. A força dos atos, a eficácia organizativa, a potência estética dos coros, a diversidade das organizações e coletivos presentes, nada disso aparece. Eventuais impactos sobre o trânsito e casos de violência, quando ocorrem, em geral de origem bastante suspeita (provocada com intencionalidade de tumultuar e acabar com os atos) ganham sempre as manchetes, em detrimento das pautas que motivaram os protestos.

É na comunicação pública que vamos encontrar representação destoante para as lutas sociais, daí a sua importância decisiva para o processo de reconstrução da democracia brasileira, fortemente abalada pelo governo de extrema direita de Bolsonaro.

Na TV Comunitária de Brasília, por exemplo, os telespectadores puderam acompanhar a cobertura direta feita pelo diretor e jornalista Paulo Miranda, entrevistando manifestantes no meio do ato, mostrando habilmente a dinâmica do protesto por dentro da manifestação, e não de forma distante da ação.

A câmera de Paulo e sua narração nos transportam para o meio do ato, sua movimentação etnografa a luta social, as faces, as falas, cantos, adereços, e o contorno delimitador da força policial, com suas linhas de homens, cavalaria, viaturas, a demarcar os que lutam não como sujeitos que demandam segurança, mas como ameaça potencial à ordem.

Se é certo que o terceiro governo Lula terá que ser hábil na manutenção de uma frente ampla para garantir a tramitação e aprovação das pautas de sua plataforma de campanha no Congresso Nacional, é certo também que os gargalos dos governos de conciliação do passado terão que ser tratados como erros que não podem ser repetidos.

E um dos aspectos decisivos é a democratização da comunicação e a construção de uma rede vigorosa de comunicação pública e sem fins lucrativos que, justamente por seu descompromisso político e estético com anunciantes, pode apresentar à sociedade brasileira um outro padrão de cobertura e representação da realidade: o tempo da imagem em tela é maior, não é o corte rápido “publicitário”, os telespectadores podem acompanhar o ato, em detalhe; a cobertura funciona também como segurança aos manifestantes, pois intimida o abuso da força e o excesso de autoridade.

Do ponto de vista da cultura política, esse padrão de cobertura é muito importante na medida em que destaca o protagonismo coletivo, evidencia o quanto o povo na rua é um fator de pressão contra políticas de austeridade neoliberais, e estimula que as pessoas participem.

No que depender da movimentação das entidades brasileiras, como a Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM) e a Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU) há interesse em participar da luta pela democratização da mídia não apenas como espectadores, e solicitantes, mas como atuadores protagonistas em instâncias decisórias como conselhos, comissões, e na mobilização de seus segmentos. Ambas entidades entregaram cartas para o GT de Comunicação do grupo de transição com propostas para o setor.

A ABCCOM representa 120 TVs Comunitárias brasileiras na TV a cabo e, recentemente, criaram o único canal comunitário por satélite do mundo, a TVCOMBRASIL, com abrangência de 50 milhões de brasileiros.

No plano de ação a entidade reivindica: fontes de financiamento; a legalização de veiculação de publicidade institucional pelas TVs comunitárias, para com isso ampliar a receita das TVs; acesso das TVs aos fundos de fomento estaduais e municipais de apoio à cultura; apoio para transformação dos canais comunitários em escolas de mídia; fortalecimento do Canal da Cidadania (previsto pelo Decreto 5.820/2006 que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre), e acesso às oportunidades da “onda aberta digital” oportunizadas por tecnologias como o 5G e fortalecimento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) com a proposta de criação de uma central de produção de mídia comunitária dentro da estrutura da EBC e para que, de fato, atue como fomentadora da comunicação pública do país.

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A ABTU, associação composta por TVs universitárias de universidades federais, estaduais, comunitárias e privadas, propôs no documento que entregou para os grupos de trabalho de Comunicação Pública e de Cultura um conjunto de doze medidas para o apoio do setor, que envolvem financiamento e regulamentação.

E também, a recriação do Conselho Curador da EBC e garantia de assento do segmento das TVs universitárias, a representação do segmento no comitê gestor do Fundo Setorial do Audiovisual, o estabelecimento de um percentual obrigatório para participação das TVS universitárias nos planos de mídia gerenciados pela Secretaria de Comunicação do Governo Federal (Secom), a transparência no sistema de concessão pública de teledifusão e, por fim, medidas que visam potencializar a capilaridade e divulgação da produção audiovisual universitária, como a proposta de inclusão de uma plataforma de difusão de conteúdo universitário no sistema operacional instalado nos televisores fabricados no Brasil, a exemplo do que já é feito para grandes corporações internacionais como Youtube, Netflix e Amazon Prime.

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Além de associações como a ABCCOM e a ABTU há ainda a produção audiovisual dos movimentos populares e a produção do cinema brasileiro contemporâneo, vigorosa e criativa a despeito da escassez de investimento. Ambas as frentes são flancos dissonantes do padrão hegemônico da representação audiovisual que chega à população brasileira pela TV.

A expectativa que fica, com o governo que assume em 2023, é que a democratização da comunicação seja reconhecida como elemento estruturante da estratégia política e que, a partir daí, possamos começar a ver por diferentes meios e formatos, a riqueza do que hoje é produzido, mas é sonegado pelas TVs comerciais brasileiras que usufruem das concessões públicas.

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*Rafael Villas Bôas é professor da Universidade de Brasília.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Edição: Flávia Quirino