Minas Gerais

Coluna

Vale pode despejar 40 mil famílias de beira de ferrovia

Imagem de perfil do Colunistaesd
Foto: Reprodução - Gilvander Moreira
Famílias vivem a 50 anos no local

Existem 40 mil famílias sobrevivendo há muitas décadas na beira da ferrovia de Mateus Leme, em Minas Gerais, até o Espírito Santo, passando por 40 cidades. Na maioria destas cidades, milhares de famílias estão sob a espada de processos individuais de despejo movidos pelas empresas Ferrovia Centro-Atlântica S.A., dona da ferrovia, e pela megaempresa MRS Logística S.A., que é dona dos trens que transportam os minérios.

A mineradora Vale é a maior acionista controladora destas empresas. Há milhares de processos de despejo na justiça estadual e na justiça federal. Em Betim e Belo Horizonte, por exemplo, há centenas de processos em várias varas cíveis. 

Ibirité

Na cidade Ibirité, região metropolitana de Belo Horizonte (MG), por exemplo, a megaempresa MRS Logística S.A., no segundo semestre de 2022, requereu judicialmente reintegração de posse de várias áreas ao lado da ferrovia. Após uma juíza de 1ª instância ter indeferido o pedido de reintegração de posse, a MRS iniciou um brutal processo de pressão sobre as famílias que “sob coação” assinaram acordos com indenizações muito injustas. Trinta e seis casas já foram demolidas, sendo 21 casas no bairro Jardim Ibirité e outras 15 casas no bairro Morada da Serra.

No bairro Jardim Ibirité, quatro famílias resistem bravamente à investida de despejo. Moram no local há mais de 50 anos, distante da ferrovia de 30 a 50 metros, em área plana, em casas que não apresentam nenhum risco geológico, de desabamento ou deslizamento, sem risco nos quintais. E estão fora da área de servidão da ferrovia, que estabelece faixa de 15 metros de largura a partir do limite da faixa de domínio, chamada de faixa não edificada. Em alguns casos, pode haver a aplicação da Lei nº 13.913/19, reduzindo a faixa para 5 metros. E o artigo 4 da Lei Federal 13.913/19 permite a permanência de edificações na faixa de domínio das ferrovias. 

:: Leia mais notícias do Brasil de Fato MG. Clique aqui ::

A Defesa Civil da Prefeitura de Ibirité, no dia 26 de dezembro de 2022, avaliou in loco as cinco casas que resistem e disse para aos moradores que as casas não estão em risco.

Laudo imparcial do geólogo Dr. Carlos von Sperling demonstra também o que todos a olhos vistos percebem: todas as cinco casas estão fora da área de servidão da ferrovia. Logo, não é e nunca foi propriedade da MRS Logística S.A. e tampouco há qualquer vestígio de posse exercida por essa empresa. A posse qualificada pelo exercício da função social é exercida pelos moradores há décadas e eles são legítimos possuidores com direito à regularização fundiária plena. 

Como a MRS Logística S.A. já demoliu 21 casas no quarteirão, após acordos com sérios indícios de coação, restando apenas cinco casas, mesmo que a juíza de 1ª instância tenha proibido a demolição das casas e arbitrado multa de duas vezes o valor das casas, é óbvio que se as famílias forem retiradas das suas moradias, as casas serão demolidas ao arrepio da proibição judicial. Pois a MRS preferirá pagar a multa ou recorrer judicialmente para conquistar uma eventual redução da multa. Isso será muito mais lucrativo para a empresa, pois terá o quarteirão todo anexado ao seu patrimônio, podendo fazer no local um empreendimento econômico de grande porte.

Caso as famílias sejam retiradas das casas a proibição de não demolir as casas e a multa em caso de demolição não garantem a proteção das casas e muito menos garante que ocorrerá o retorno das famílias às suas residências no final de janeiro de 2023. 

Interesses inconfessos

Se não há risco nas casas, nem nos quintais e se estão fora da faixa de servidão, quais os interesses não confessados que estão por trás?

As famílias vivem há mais de 50 anos no centro da cidade de Ibirité e é óbvio que o valor econômico dos terrenos ocupados valorizou muito. A comunidade do Jardim Ibirité está em frente ao Estádio Municipal da cidade.

Há interesse em apropriar do quarteirão onde foram demolidas 21 casas para ampliar a área de estacionamento do Estádio? O famigerado rodoanel da Região Metropolitana de Belo Horizonte, caso seja construído, passará próximo da área ou poderá inclusive passar na área? A Vale S.A. e a MRS têm interesse em construir um terminal de carregamento de minério na área? Ou o interesse é apropriar-se de todo o quarteirão para repassar para uma construtora fazer no local prédios?

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Existem também na margem da ferrovia clubes, casarões, prédios privados e públicos, sede e galpões de empresas, casas luxuosas que não estão ameaçadas. Em Ibirité a prefeitura, o Fórum e um shopping estão a poucos metros da ferrovia. Entretanto, ameaçados de despejo estão apenas famílias empobrecidas. Isto é racismo estrutural, violação de direitos humanos fundamentais, algo inadmissível.

Despejo zero

Importante mencionar ainda que em recente decisão, de 31 de outubro de 2022, o Ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou e o Plenário do STF referendou que os tribunais estaduais e federais instalem Comissões de Conflitos Fundiários para mediar e conciliar em eventuais despejos, antes de qualquer decisão judicial. Deixa claro, também, que além das decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções devem ser avisadas previamente, as comunidades afetadas devem ser ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas para resguardo do direito à moradia, proibindo em qualquer situação a separação de integrantes de uma mesma família.

O despejo das quatro famílias do Jardim Ibirité, em Ibirité, não pode acontecer.  Caso a empresa MRS continue insistindo nesta brutal violência, o processo precisa ir para a Comissão de Conflitos Fundiários do TJMG, para a Central de Conciliação do TJMG (CEJUSC) e continuar na Mesa de Negociação do Governo de Minas Gerais, que, aliás, já realizou reunião plenária virtual em regime de urgência, no dia 28 de dezembro de 2022.

É evidente que quase todas as 21 casas do Jardim Ibirité, demolidas pela MRS, estavam fora da faixa de domínio da linha de ferro, como estão as casas das quatro famílias que resistem. Ao lado das casas tem rua asfaltada, as famílias pagam conta de água, de energia e IPTU há décadas. Possuem também contrato de compra e venda. Portanto, são casas e lotes sobre os quais as famílias têm o direito de regularização fundiária.

Esperamos a participação do Governo Federal, agora com o presidente Lula, na resolução deste conflito de forma justa, ética e pacífica, conflito que envolve cerca de 40 mil famílias ao longo de mais de 1.200 km de ferrovia em 40 cidades de Minas e do Espírito Santo. 

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)

---
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

----

:: Leia outros artigos da coluna de Frei Gilvander Moreira ::

Edição: Elis Almeida