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Na atual guerra, o centro do problema é a Otan/EUA

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Os ministros Serguei Lavrov e Wang Yi afirmaram que relações entre Rússia e China se fortaleceram em meio à "turbulência internacional" - AFP
Não se pode relativizar a crítica à centralidade do imperialismo na manutenção da guerra na Ucrânia

Há mais de um ano, a guerra da Rússia contra Ucrânia/Otan tem levado a muitas divergências entre analistas e partidos de esquerda. Nesse sentido, desde a invasão russa em território ucraniano, uma complexa realidade se colocou para os intelectuais que, de alguma forma, sempre criticaram o governo dos EUA mas que tem, como pressuposto correto, não aceitar a invasão de um país contra outro.

Porém, a História não pode ser analisada a somente partir de uma foto estanque do momento, mas a partir de processos que, normalmente, precisam ser avaliados em meio aos seus contextos de longa duração.

No caso da Rússia, o dia da eclosão da guerra, 24 de fevereiro, não pode ser o único marco de análise como querem algumas organizações, estendendo o debate para uma palavra de ordem de “Nem Putin, nem Biden”, que não parece responder à complexidade do conflito.

A pergunta mais correta no caso é: qual é o centro, a questão principal do conflito, que deve ser objeto de crítica das forças de esquerda e socialistas?

Ou seja, é certo que muitas organizações têm críticas ao imperialismo. Entretanto, ao relativizar a centralidade das suas ações em relação ao Leste Europeu, não percebem que não é possível equivaler duas forças equidistantes – a posição do governo dos EUA e a posição do governo russo, tomando em conta a História e o longo processo desde a dissolução da URSS, em 1989.

Ainda que seja possível a caracterização crítica do caráter de classes que conforma o governo Putin, que não é ligado às organizações dos trabalhadores e ainda revestido de um imaginário conservador sobre pátria, família e reerguimento da velha Rússia -, ainda, assim, a crítica central deve estar focada no papel dos EUA e da OTAN na atual guerra.

Como afirmou o analista político da Telesur, José Antonio Egido, em entrevista ao canal Rondó da Liberdade, em maio de 2022, os eixos gerais do conflito já eram perceptíveis desde 2014:

“a Rússia está esperando há oito anos, não quis enfrentar esta situação imediatamente, mas diante da iminência de uma agressão contra a Rússia, de uma agressão contra a população russa de Donbass, da iminência de um ataque ou do envio de armas nucleares e a descoberta de armas bacteriológicas em construção, a Rússia interveio de tal forma que era muito fácil saber que se não, como eu disse em 2014, se os Estados Unidos não fossem parados, veríamos uma guerra terrível. Os Estados Unidos seguiram, e a Rússia, de forma autodefesa, teve que intervir em um conflito que é gravíssimo, a humanidade vive realmente um momento dramático”, afirmou.

Em vinte anos, golpes e invasões

Temos, para isso, que recordar do papel que o imperialismo dos EUA cumpriu nesse eixo histórico de vinte anos, seja no incentivo, praticamente anual, a golpes e desestabilizações contra os governos progressistas na América Latina, seja nas invasões diretas e indiretas na África, Ásia e Oriente Médio.

Como analisa o professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Danilo Enrico Martuscelli, militante da Consulta Popular, no artigo “Conceito de golpe de Estado no debate sobre o neogolpismo na América Latina contemporânea”, mesmo que os golpes recentes no continente não tenham intervenção direta do governo dos EUA, ainda assim “visava inclusive alinhar os Estados dependentes da região aos interesses da principal potência imperialista do continente: os Estados Unidos”.

Com isso, sabemos que ocorreram golpes contra os governos de Zelaya (Honduras, 2009), Lugo (Paragui, 2012), Dilma Rousseff (Brasil, 2016) e Evo Morales (Bolívia, 2019), além de tentativas praticamente anuais de desestabilização em algum dos países da América Latina. O mais sintomático é o exemplo contra a Venezuela, em 2002, e o desgaste profundo entre 2015 e 2019.

A guerra contra o Afeganistão (2001), Iraque (2003), Síria e Líbia (2011), derrubando governos que possuíam medidas de controle sobre recursos naturais, com certo grau de independência em relação às potências centrais, trouxe consigo uma crítica mais dura ao governo dos EUA – se pensarmos nas fortes mobilizações mundiais contra o governo Bush e a ação no Iraque – fator que parece relativizado nos dias atuais.

A guerra na antiga Iugoslávia já havia mostrado, ainda na década de 90, mesmo com a queda do bloco socialista confirmada, a disposição dos EUA de combater governos não alinhados. Antes disso, ainda nos anos 70 e 80, já tínhamos a intervenção direta e indireta do governo dos EUA em uma série de países, como aponta o relato do jornalista Chris Hedges, ainda que ele maneje o conceito de “guerra por procuração”, com o qual não necessariamente nos alinhamos:

“Na América Central, onde os EUA armaram regimes em El Salvador, na Guatemala, e os insurgentes Contras que tentavam derrubar o governo sandinista na Nicarágua. Reportei sobre a insurgência no Punjab, uma guerra por procuração fomentada pelo Paquistão. Eu cobri os curdos no norte do Iraque, apoiados e depois traídos mais de uma vez pelo Irã e Washington. Durante o meu tempo no Oriente Médio, o Iraque proveu armas e apoio aos Mujaheddin-e-Khalq (MEK) para desestabilizar o Irã. Quando eu estava na antiga Iugoslávia, Belgrado pensou que, ao armar os sérvios e os croatas bósnios, ela poderia absorver a Bósnia e partes da Croácia numa grande Sérvia”.

Com isso, a fragilidade da teoria, a submissão e revisionismo de grande parte da esquerda europeia e mundial, aliados ao papel deseducador dos meios de comunicação, tornaram o debate sobre imperialismo como coisa do passado, quando ele nunca esteve tão presente em nossos dias.

No caso da guerra da Rússia, mais do que o debate se Putin deveria ter feito à invasão ou não, é perceber o quanto os acordos gerados após a queda do Muro e a dissolução do campo socialista foram descumpridos. Recorremos novamente à crítica feita por Egido, na mesma entrevista para o Rondó da Liberdade:

“O conflito não é mais contra o campo socialista europeu. É um conflito contra a Rússia, contra a China, contra a Coreia e a Índia, que é um conflito contra eles. A Indonésia não quer deixar de convidar a Rússia para a reunião do G-20 porque os norte-americanos ordenam, os países africanos rejeitam fortemente esses argumentos da OTAN e da América Latina, aí temos os países da ALBA que ratificam um apoio fechado à Rússia porque a Rússia, embora seja verdade que é uma Rússia burguesa, não é uma Rússia socialista, mas a Rússia em 2019 salvou a Venezuela quando Trump ameaçou invadir a Venezuela, dois bombardeiros russos chegaram ao aeroporto de Maiquetía, que é o principal aeroporto internacional, relatando, dissuadindo que o imperialismo norte-americano invada nossa amada Venezuela”, afirmou.

Posição defensiva da Rússia

Fato é que, desde os anos 90, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) se expandiu como campo a serviço dos EUA contra os povos e passou a desestabilizar a Rússia a partir de suas fronteiras, uma vez que, como sabemos, a vasta extensão do território do país torna uma ocupação militar, por terra, ar e, sobretudo, marinha, inviável.

Desde 1999, a Otan incorporou em sua composição países como a Polônia, República Tcheca, Hungria, Eslováquia, Estônia, Lituânia, Letônia, Romênia, Bulgária, Albânia, Croácia, Macedônia do Norte e Montenegro. Ao se observar quais países têm aderido ao tratado, fica nítida a formação do cerco à região fronteiriça da Rússia. Recentemente, vimos o processo de incorporação de Suécia e Finlândia, acentuando a contradição entre Rússia e uma Europa submissa à orientação do governo dos EUA.

Em 2007, Putin havia advertido que era inaceitável para o governo russo o avanço da Otan até suas fronteiras, em particular na região da Ucrânia e do Cáucaso. No ano seguinte, em agosto de 2008, pela primeira vez depois do fim da URSS, a Rússia mobilizou tropas para ocupar em seguida os territórios da Ossétia do Sul e da Abecásia, no norte do Cáucaso.

Em 2014, no episódio dos acordos de Minsk, após a derrubada pela extrema direita de governo ucraniano alinhado com Moscou, e após a tomada do território da Crimeia por parte dos russos, os acordos expressaram medidas voltadas à população do Donbass – Donetsk e Luganski – territórios e população de cultura e idioma russo localizados na Ucrânia.

Entre seus pontos, os acordos de Minsk falavam em:

“Tomada de medidas para melhorar a situação humanitária na região de Donbass, no Leste da Ucrânia”. E falavam também em “Descentralizar o poder, inclusivamente através da aprovação de uma lei ucraniana sobre a descentralização do poder, sobre o “regime provisório de governação local em certas zonas dos Oblasts (regiões) de Donetsk e Lugansk” (“Lei sobre o estatuto especial”).

Hoje é consenso entre analistas que, no fundo, os tratados foram desrespeitados e se configuravam como uma forma de ganhar tempo e preparar a Ucrânia para a guerra. Desde então, o Ocidente apoiou milícias e organizações neonazistas ucranianas, caso do Batalhão Azov, o Right Sector, o National Corps e o Svoboda, gerando o crescimento da extrema-direita na região.

Esses grupos, somados ao exército ucraniano, vinham desencadeando uma guerra contra a população russófona do leste da Ucrânia desde 2014. No que se refere à análise midiática, foi mais uma prova da seletividade ao mencionar esses agrupamentos paramilitares de extrema-direita, vendo como natural seu alinhamento e subordinação ao exército oficial da Ucrânia. Bem como não se pode deixar de criticar o uso do governo russo também de forças paramilitares e mercenárias na guerra – caso do grupo privado Wagner.

Nesse contexto, que exigiu identificar o polo central da contradição, poucas organizações populares e de esquerda, no Brasil, caracterizaram a guerra como defensiva por parte do governo russo. No recente Caderno de Teses, da Consulta Popular, organização que completou 25 anos recentemente, vemos o seguinte apontamento:

“Com a sinalização de adesão da Ucrânia à OTAN, uma linha demarcatória foi cruzada. A guerra da Rússia contra o governo da Ucrânia e a OTAN deve ser caracterizada como uma guerra defensiva. A Ucrânia, que possui forte ligação com a formação social da Rússia, está estrategicamente bem localizada. É reputada a ela capacidade nuclear para produzir futuras ogivas atômicas e mesmo os aparelhos “defensivos” que receberia em adesão ao tratado poderiam ser utilizados para atacar a Rússia e levar a região para uma escalada militar extrema”.

É preciso de fato apontar que, diferente do início da invasão russa, o desenvolvimento do conflito fez com que, mesmo analistas e organizações adeptas da palavra de ordem “Nem Putin, Nem Biden” (de Noam Chomsky a outras organizações) reconhecessem o papel central que a Otan ocupa no prolongamento e na falta de negociações no conflito. Mas apenas essa nuance de análise não é suficiente diante da necessidade de uma forte crítica focada no imperialismo e na Otan.

A Consulta Popular, desde 2007, aponta a análise de que o imperialismo se configura como “inimigo principal da humanidade”, o que sempre teve influência na análise de dirigentes, analistas e quadros dos movimentos populares:

“36. A estratégia dos EUA para se manter hegemônico exige cada vez mais o controle dos processos de criação e apropriação do valor e das riquezas. Mesmo quando os indicadores econômicos são positivos, fica nítida a profundidade da crise dos EUA. O crescimento não gera novos empregos e se alicerça, sobretudo, na captação dos fluxos mundiais de capitais a partir do controle do dólar. Por meio desse mecanismo, consegue compensar seus gigantescos déficits. Porém, com a capacidade de endividamento da sociedade estadunidense se reduzindo, tudo indica que nos próximos anos enfrentaremos turbulências de efeito imprevisível nas chamadas economias periféricas.”

Acordos possíveis?

De forma geral, no início da guerra, analistas de esquerda apontaram algumas tendências que se comprovaram:

A - O interesse dos EUA no prolongamento do conflito;

B - O acirramento da contradição entre o imperialismo em ação indireta para deter a expansão da influência chinesa;

C - A consolidação do bloco Rússia e China; e do impacto da guerra no coração dos países europeus.

D - A posição dos EUA de arrastar a Europa para uma guerra contra um adversário do qual o continente é dependente para fornecimento de gás e petróleo.

Um ano depois, novas questões se colocam, a partir da resistência da economia russa ao embargo do Ocidente, abrindo novas parcerias econômicas, do prolongamento da guerra e da perigosa possibilidade de conflito termonuclear entre as potências.  

Ainda que não se justifique a invasão que atente contra a soberania de um povo e território, é fato que, como fator diferente de todas as invasões imperialistas desses vinte anos, a atual guerra possui aberturas e acordos para negociação. O governo da China expressou recentemente com seus 12 pontos essa possibilidade. Um desses pontos é sintomático desse momento, quando a diplomacia chinesa critica a “mentalidade de guerra fria” que predomina no interior do governo dos EUA que deve ser abandonada. Mais do que uma pauta pragmática, trata-se da crítica de uma postura do governo dos EUA.

Contradições que se estendem

A guerra está produzindo contradições nos países da Europa, pela proximidade e impacto, e pelo aumento nos países do orçamento militar – como já ocorre na França, em 35% -, enquanto trabalhadores e servidores passam por retiradas de direitos e dificuldades.

Tudo aponta na direção de choques mais drásticos. No entanto, uma linha foi demarcada, como explica o analista Fiori em artigo recente:

“Os russos já consolidaram uma linha de frente consistente e cada vez mais intransponível para as tropas ucranianas, e com isto conquistaram o território e a independência definitiva de Donbass e Crimeia, zonas ucranianas de população majoritariamente russa”.

A classe trabalhadora e suas organizações, a partir da demarcação das fronteiras da guerra e da soberania dos povos do Donbass, deveria fazer forte campanha pelo recuo do imperialismo estadunidense e da Otan. Há muito tempo, a guerra ganhou um patamar de conflito generalizado, alcança o coração da Europa, exigindo sinalizações mais duras por parte da China, bem como, já sabemos, do governo russo.

Cada vez mais, os respectivos apoios, sobretudo dos países da Otan em relação à Ucrânia, são vistos como intervenção direta no conflito. Como exemplo, o uso de urânio empobrecido em mísseis fornecidos pela Inglaterra, como fato mais recente.

Reforçar a crítica e a mobilização pelo recuo da Otan, pela soberania dos povos russófonos na Ucrânia e pelo marco de acordos na direção de um mundo multipolar é a maneira correta de criticar o imperialismo em tempos de crise mundial.

A palavra de ordem “Nem Putin, nem Biden” não pode encobrir a História, o papel da Otan e do imperialismo nos últimos vinte anos no mundo – e o cerco imposto ao Leste Europeu desde o fim da URSS. Não reflete a urgência de acordos programáticos para frear o perigo da extensão da guerra.

Às organizações revolucionárias e classes trabalhadoras nos países devem centrar a crítica à Otan e ao imperialismo dos EUA, os inimigos centrais de toda humanidade.

 

Referências bibliográficas:

CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. Xamã, 1996.

CONSULTA POPULAR, Caderno de Teses para VI Assembleia Nacional Luíza Mahin, fevereiro de 2023.

CONSULTA POPULAR, Cartilha número 19, 2007.  

DEUTSCHER, Isaac. Stalin. Uma Biografia Política.

LOSURDO, Domenico. “Guerra e Revolução – O mundo após o outubro de 1917”, Boitempo, 2017.

MARTUSCELLI, Danilo. O conceito de golpe de Estado no debate sobre o neogolpismo na América Latina contemporânea, Universidade Federal de Uberlândia/UFU), 2023.

RANG, Carlos. Dialética da guerra antiimperialista. A Estratégia dos povos.

Dossiês:

A Internacional, número 29, revista do Comité de Organização pela Reconstituição da Quarta Internacional (fevereiro de 2023).

TRICONTINENTAL, 2022. Os Estados Unidos em busca de uma Nova Guerra Fria: uma perspectiva socialista.

Entrevistas:

Noam Chomsky:

https://outraspalavras.net/outrasmidias/chomsky-em-busca-da-paz-na-ucrania/

Jose Antonio Egido:

https://www.youtube.com/watch?v=lSQRxioJZHs&t=763s

Artigos:

Sobre a aliança sino-russa:

https://aterraeredonda.com.br/o-fantasma-da-alianca-sino-russa/

Sobre a posição da mídia logo no início do conflito:

https://www.brasildefatopr.com.br/2022/02/28/a-velha-e-nova-abordagem-midiatica-da-guerra-ou-a-midia-a-servico-da-pauta-da-otan

Sobre o papel dos EUA na Iugoslávia:

https://www.brasil247.com/blog/a-morte-por-procuracao-da-ucrania

Sobre a manutenção e conquistas da Rússia na atual guerra:

https://www.brasil247.com/blog/um-ano-depois-eua-dobram-sua-aposta-mas-russia-ja-ganhou-o-que-queria

Sobre os dilemas da atual economia de guerra na Rússia;

https://rebelion.org/la-economia-rusa-camino-de-la-militarizacion-total/

Sobre a invasão da Rússia ser o terceiro momento de uma guerra desde 2004:

https://rebelion.org/guerra-o-guerras/

https://rebelion.org/un-ano-despues-ha-funcionado-la-guerra-de-sanciones-contra-rusia/

Papel da China

https://rebelion.org/el-plan-de-paz-de-china-para-ucrania/

Sobre um estado dependente e endividado na Ucrânia:

https://rebelion.org/un-experimento-neoliberal-llamado-ucrania/

Sobre China e Rússia e a crítica à questão militar dos EUA:

https://actualidad.rt.com/actualidad/461541-rusia-china-profundizar-relaciones-nueva-era

Edição: Lucas Botelho