Paraná

Coluna

Diante do retrato de jovem dançarina em área de despejo

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A questão é que talvez na sua imagem esteja um concentrado de muita coisa que a gente gostaria pra esse mundo - Juliana Barbosa
Desejo a você um futuro, com um eixo muito mais longo e promissor que o nosso

Não sei direito o que escrever pra você. Mas eu realmente senti que precisava escrever alguma coisa.

Não conheço o seu nome. Pude saber somente do seu movimento, que me desconcertou e me abalou durante um dia inteiro. Na verdade, nem mesmo vi o seu movimento, pois o que tenho diante de mim é uma imagem num grupo de zap, em pleno instante captado pela fotógrafa Juliana Barbosa. E que me pegou. Posso, então, somente supor a energia que você arrastou com o seu corpo, em rodopios de pião certeiro, acumulando aquela alegria de quando temos idade de criança.

Concluo que você estava sorrindo, enquanto ensaiava algum passo leve ao lado de uma amiga de um possível grupo de dança, na área Tiradentes 2 que, de tão longe de tudo, faz pensar na dificuldade pra uma família acessar os serviços públicos. Me pergunto como consegue estar sorrindo e tão leve, numa área para a qual algum juiz desconhecido decretou a necessidade de reintegração de posse. Despejo, como a gente diz, em bom português. E forçado, a partir do pedido de uma empresa de lixão. Pra satisfazer a necessidade de alguns poucos empresários em expandir seus braços de polvo.  

Porém, tudo ali é tão seu, tão lhe pertence. Seus pés estão pisando em chão de barro seco. E talvez seja isso. Há algo que me abala e desloca na imagem, que é justamente o eixo de um de seus pés, levemente inclinado, sustentando todo o peso do seu corpo, cravado no chão de solo seco como quem algum dia pudesse pisar em nuvens, compasso seco descrevendo linhas de amizade e empatia.

Reforço: não sei seu nome. Ainda assim, gostaria de pensar que somos amigos. Peço desculpas de antemão por qualquer inconveniente. Desejo a você um futuro, com um eixo muito mais longo e promissor que o nosso, em tempos quando alguns de nós já não visualizam com nitidez como será o desenlace da História nas próximas décadas.

A questão é que talvez na sua imagem esteja um concentrado de muita coisa que a gente gostaria pra esse mundo. A alegria. A liberdade. A leveza. O chão que não pertence a você, mas que não precisa, na realidade, pertencer a ninguém. A sombra e as copas das árvores protegendo as casas escondidas na mata, porque ainda precisamos de manuais de guerrilha pro combate. O povo chegou a construir uma pequena usina de energia a partir do veio de água que corre suja desde o lixão. Volto a me convencer, durante o dia, de que o leve traço da sua dança talvez seja a prova de que um outro mundo é possível, como a minha geração, ainda muito nova, costumava dizer há vinte anos atrás.

Aquela foto me marcou numa tarde ordinária de segunda e talvez seja esse o papel da arte. Fiquei com um certo incômodo no peito, mas confesso que com uma sensação boa. Aquela sua passada leve, imagino que fosse isso, ou quem sabe um salto, ou quem sabe mesmo o preparo pra um rodopio, sensação latente de algo que está para explodir em força, com a intensidade da radiação do sol. Na ponta do dedo dos seus pés, minha cara, poderia ficar sustentado o equilíbrio desse mundo.

Mais que os ombros de Drummond, que o poeta disse suportarem o mundo, seus pés sustentariam as dores do leste europeu, a expectativa de milhares de famílias sob risco de despejo, a fome do último período, as dores e as violência de um mundo injusto, a exploração do trabalho, a resistência. Enquanto houver movimento, posso concluir, sabemos que haverá resistência. O seu traço no ar, minha jovem amiga, deslocou um pouco o eixo do planeta Terra, ou no mínimo deslocou o nosso próprio eixo, mas confesso que pra um lugar muito melhor do que antes.

Um forte abraço, do seu agora amigo,

Pedro.

Edição: Lucas Botelho