Rio Grande do Sul

Coluna

Ei moça, cuidado! Você está no Distrito Criativo!

Imagem de perfil do Colunistaesd
O bairro abriga um expressivo número de artistas das mais variadas áreas, com uma concentração de ateliers de arte, locais de exposição, antiquários, cafés e bistrôs culturais - Foto: Ricardo Ara
O Distrito Criativo foi premiado em Brasília como local privilegiado de expressão urbana e artística

Passei minha primeira infância em um bairro bastante sensível da cidade, o Partenon, onde aprendi, muito cedo, o que era a violência policial com as classes desfavorecidas, o que era a solidão e o desespero das mulheres, com seus homens desempregados ou presos e com suas crianças para alimentar.

Quando mudamos para o bairro Floresta, na esquina da Gaspar Martins com a Farrapos, apesar de serem espaços urbanos muito diferentes, não senti tanta diferença, pois a vida ali também não usava maquiagem, era como ela era. Desde muito cedo, uma agitação dominava as ruas, todos corriam muito, para chegar ao trabalho, ou para tentar encontrar um trabalho.

Nos finais de tarde, a grande avenida ficava povoada por prostitutas de todas as idades. Eu tinha dez anos de idade, e me chamava a atenção que várias delas fossem ainda adolescentes. Lembro que minha mãe e minhas tias carolas aconselhavam muito a gente a estudar para ter um futuro melhor do que o daquelas moças.

Mudei de bairro novamente aos 20 anos, e voltei, muitas décadas depois, em 2018, a morar nele. A Farrapos continua a mesma, porém mais deserta de grandes estabelecimentos comerciais e com muitos prédios e lojas vazios, o que lhe dá um aspecto sinistro. Entretanto, o bairro preserva seu jeito de sempre, sua paisagem urbana não abriu mão das prostitutas, e ganhou, na rua São Carlos, um cenário muito seu: o “trottoir” das travestis. Tenho muito contato com este trottoir, pois há mais de 20 anos minha melhor amiga mora ali, e hoje nossos pátios se comunicam.

Muita gente antiga do bairro ainda resiste, e mesmo os mais novos parecem curtir o ritmo de nossas ruas, o vai-e-vem dos cachorreiros, os catadores de lixo reciclável que circulam nas nossas ruas, nossa feirinha modelo na Pracinha Florida, onde por vezes se encontram artistas do bairro para comer um dos melhores pastéis da cidade, nosso centro cultural, o Vila Flores, nossos sobrados quase centenários (moro em um deles), nossas casinhas dando para a calçada, etc.

Aliás, é fato que mora e trabalha no bairro um expressivo número de artistas das mais variadas áreas, e que a concentração de ateliers de arte, locais de exposição, antiquários, cafés e bistrôs culturais é significativa. Isto tudo inscreve nosso bairro como o DC, o Distrito Criativo, recentemente premiado em Brasília como local privilegiado de expressão urbana e artística.

Entretanto, desde 2018, percebo que os aplicativos (UBER, 99, etc.) tem reserva para servir o bairro. Semana passada, quando eu voltava para casa, o motorista do Uber não se conteve e me disse, quando entramos na São Carlos “Você não tem medo de andar por aqui? Não é seguro, este bairro, veja estes travestis!” Indignada, eu lhe repliquei: “Moço, é ‘estas travestis’, e não, tenho medo quando estou em bairros onde elas não estão. Nestes sim, me sinto em perigo. Aliás, nunca me senti tão em perigo como quando morei no Moinhos de Vento, que tem pacto de ‘blindagem do bairro’ com a polícia”. Ele ficou mudo até chegarmos à minha casa. Quando ele saiu, fiquei pensando que talvez a cidade devesse saber mais sobre essas pessoas que compõem nossa paisagem urbana.

As travestis do meu bairro são, muitas delas, moradoras dele. O prédio em frente à minha casa é habitado por várias delas. Encontro-as no supermercado, no restaurante da Cristóvão Colombo, aos sábados. E pasmem: Já vi até senhoras carolas, dessas que vão na missa todos os dias (a igreja é na São Carlos com a Ramiro), trocar receitas de cozinha com elas. Em 2019, fiz uma viagem e deixei na minha casa uma amiga que mora no Interior. Quando foi pegar seu carro na garagem, ela tropeçou e se estatelou na calçada. Uma das travestis chamou outra e a acudiram, cuidaram dela até que se sentisse em condições de caminhar novamente.

A vizinha idosa da minha amiga (casas geminadas), um dia resolveu se atear fogo. Do outro lado da rua, a travesti viu a cena, correu e chamou os vizinhos, que cessaram o fogo da senhora e chamaram ajuda clínica pra ela. Há poucos dias, eu ia ao supermercado da Gaspar Martins, e ouvi um grito “Ei, moça, cuidado! Sua camisa caiu!” Me dei conta que a camisa que eu havia pendurado na bolsa não estava ali. Virei para trás, e ela vinha, linda, toda maquiada, quase desnuda com suas meias arrastão, e com minha camisa nas mãos, sorridente, para me devolvê-la. Agradeci, e ainda tive direito a um elogio: “É linda, sua camisa, você tem bom gosto”. Não me contive e respondi: “Obrigada, tenho sim, por isso moro aqui, no Distrito Criativo, onde vocês estão”. 

Por essas e outras é que quando algum cliente delas, sempre com carros milionários, se recusa a pagar e que elas armam barraco, acho mais do que normal e justo que os vizinhos venham à janela, em plena madrugada, e peguem junto com elas gritando: “Pô, não tem vergonha? Paga a moça, ela tá trabalhando!”.

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA, e Presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko