Paraíba

Coluna

TICO, BARBA e ZICO

Editada pelo autor através de lyrebirdstudioartista.com.br - Acervo pessoal do autor
"Corriam, brincavam e dos encontros se nutriam."

Por Ademiel de Sant’Anna Junior

Tico, Barba e Zico com esses irmãos ninguém tenta... Moleques espertos, ainda novinhos moram na Providência e com a vó Carolina, espalham no morro sua potência. Tico, desde muriquinho aprendera com as matemáticas a brincar, sabia que o número é muito mais do que diminuir, multiplicar e somar. Ninguém passava a perna em Tico, quando jogava gude na rua já ia se apressando na cotação: "Cada bola vale cinco, as grandinhas o dobro da metade desse valor... Eu fico com oito porque no rolo entrou cinco de cada e você perdeu duas na búlica, entendeu, Zé?". Falava enquanto recolhia seus lucros suados do dia. Junto com seus irmão subia e descia entre os becos e avenida atravessando a via sem pedir permissão. Afinal, como todo mundo também pertenciam àquele chão. Tico e seus irmãos escorregavam entre os becos e ruas sem saída, corriam, brincavam e dos encontros se nutriam.

Quando descia na vendinha de dona Pilar já sabia que de um desafio matemático Tico ia participar. Dona Pilar perguntava com a calculadora na mão: "Tico, quantos por cento de farinha vão nesse pão? 360g (3 xícaras) de farinha de trigo, 230ml (1 xícara) de água, 4 g (½ sachê) de fermento biológico seco, 7 g (½ colher de sopa) de sal". Com sobrancelhas baixas que protegiam seus olhos do suor que lhe escorria da correria até ali, Tico já começa a calcular. Um sorrisinho de canto de boca do auge de seus nove anos, já começa a esboçar. Logo responde dançando com os irmãos Zico e Barba pra lá e pra cá: "Se o pão tem seiscentos gramas e a farinha é 360, a resposta é 60% de farinha, né não Dona Benta?". Benta distraída com sua mortadela, entrava na dança e começava a falar: "Esses meninos... eu vou te contar viu!".

Dona Benta era quem dançava com os meninos que lhe ajudava a subir a ladeira com seu cestinho. Os moleques voltavam pra casa como heróis, sua avó logo chamava "Vamos logo meninos, ainda tenho que trabalha em Niterói". Vó Carolina sabia que assim como as pipas, seus netos precisavam de vento pra voar. E como boa filha de Oyá, ela não se cansava de os soprá. Desciam a Providência, ladeira abaixo corriam com suas mochilas... não chegariam atrasados. Zico, com treze anos era o poeta de fora da cartilha e usava as palavras pra brincar, com sua língua solta conseguia rimar ouriço com pão, não importava a ordem das sílabas...

Zico fala tudo em rima e arrepia. Já o mais velho, o auto intitulado galã entre os três, Barba, que some da cara, apelido com nome e sobrenome que ganhou de seu Juarez, o eletricista, quando pediu em namoro sua filha, a menina Letícia. Seu Juarez com carinho mandou o moleque estudar, e os tufo de barba que crescia cada uma num canto da cara, seu Juarez acabou por nomear. O nome pegou, e Barba assume os pelo e a eles deixa crescer, orgulhoso com seu novo nome de penugem rala, rala... Não se deixa esmorecer! Comemora com seus irmãos seus quinze anos, orgulhoso com sua barba que some da cara, o jovem gostava de cantar e não negativava nem um pouco o apelido, pelo qual seus amigos o passaram a chamar. Sabia que era o mais velho e de seus irmãos precisava cuidar. Na escola Barba curtia a aula de literatura e com Tico e Zico gostava de cantar sem nenhuma partitura. Suas mochilas, caderno e lápis virava instrumento, que os unia neste grupo artístico, poético e zoero. Assim então desciam barulhentos Tico, Zico e Barba pelo morro inteiro. 

Seu Gumercindo o mais velho, que vira os três nascer e sabia da triste história de Tereza e Irineu, seus pais que bem novos perderam a vida num tiroteio das polícias que eles não tinha nada a ver, soprava a fumaça de seu cigarro de palha, primeiro num gesto de esquecer. Com seu inseparável café, juntava ar mais puro pra assoprar nos meninos a catifunga ancestral do seu fumo. Os menino passavam e seu Cindo benzia e depois perguntava: "Tão indo na escola pra estuda ou pra merendar". O velho estendia a mão do bolso e dava pra Tico dividir por três, vinte cruzeiro. Tico sempre respondia quando for rico te devolvo seu Cindo, vou merendar, mas  estudar e me tornar o engenheiro da Providência.

Com isso seu Cindo o sinhô pode contar. Dos olhos de seu Cindo que escutava atento os três meninos cantarem, o morro escorria numa espécie de poesia dessas que seu Cindo sem palavras parecia um samba de saudade soletrar. Aquele samba de domingo de tardinha embaixo da jaqueira que ele e os mais velhos tocavam pra enfrentar a tão temida segunda feira. Seu Cindo sentia a Providência desde os pés dos meninos, e conforme eles descia seu Cindo pensava: "Saravá meus ninos, que seus caminhos vocês possam realizar! Saravá!". Barba cantava enquanto descia, Zico e Tico faziam uma espécie de acompanhamento desafinado com euforia singular. Chegaram à escola, e no caminho compraram com os vinte cruzeiro um chiclete pra cada um. Na escola foram direto o café tomar café, enquanto Zico esbanjava suas poesias criadas a recém na ponta do pé, Tico tentava colocar mais gudes em sua coleção junto com o menino Zé. 

Iniciam as aulas, e Barba escrevera um rap pra cantar no português que ia rolar daqui a pouco e a professora nesta semana falaria da música e suas manifestações no Brasil. O dever de casa é que cada aluno trouxesse a letra de uma música que curtia. Enquanto Barba canta seu rap, Tico e Zico faziam um: “tchurutchurá - tchurutchurutchurá”. Com o 10 de Barba saíram da escola em euforia, Tico, Zico e Barba desceram a avenida, foram até a UFRJ na Praia Vermelha trabalhar, que era o ponto que lhes cabia, e no vidro dos carros que entravam na Universidade Federal do Rio de Janeiro eles pediam um dinheiro, nem sempre eram bem vistos, por vezes eram corridos dali, mas nenhum dos três marcava bobeira não. Dona Carolina e o restante da Providência que a ajudava os meninos a criar, sabia que Carolina, tinha que muitas vezes abrir mão do almoço pra poder jantar.

Tico enquanto limpava, se vê refletido no vidro de um carro, e quanto mais “limpo” o vidro ficava seus reflexos pela porta da frente da universidade entrava. Ao fundo uma gargalhada inebriava e arrepiava seus corpos, e olhando em volta ninguém havia além dos três, nem o motorista que camarada já era freguês. "Encruzilhada se faz com quatro", dizia Tico, ainda tentando achar o dono da gargalhada. Mas enquanto se enxergavam nas imagens que o vidro refletia, escapava de seus corpos gestos admirados, gingavam os três no reflexo mais velhos, alunos da UFRJ. Os menino brincava de entrar pelo reflexo pela porta da frente da universidade. E a gargalhada de alguém que não viram, começara a lhes contagiar. Riam, riam em comitiva, a notícia das rádios e jornais era “Fora implantada a lei das ações afirmativas”. Até hoje não sabemos de quem era a gargalhada que a eles acompanhava na beira da encruzilhada, e muito menos interpretamos o que a imagem queria dizer, mas quem quer saber? Os irmãos apostam na experimentação! Da boca, pés, ouvidos e mãos dos irmãos que são minhas/nossas pulsantes atrevivências e assim vão dançando até o chão. E a letra do Rap de Barba? Talvez assim como eu, você esteja curioso, curiosa, curiose pra escutar. Então bora lá.


SÔ MAIS UM.
Sô mais um que chega
Minha língua arde arte e seu corpo faz tremer
O meu português cê não consegue entender?
É no passinho distraído que eu vou chegando (3X)
Eu desco e subo a providência não tente me impedir
Essa é minha atrevivência ninguém vai me banir
Sô mais um que é um montão que chega aqui e não vo desistir.
É no passinho distraído que eu sou atrevido (3X).

Só mais um... 
 

[1] Músico, poeta, escritor e psicólogo. Doutorando e mestre em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Departamento de Direitos Humanos e Saúde da ENSP-FIOCRUZ. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas É’Léékò UFPel-UFRGS

Edição: Polyanna Gomes