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Cultura em risco: crianças de prontidão?

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"Lutemos por mais escolas como a Villa-Lobos, na Vila Mapa, que há décadas forma cidadãos e cidadãs para viverem em sociedade produzindo cultura" - Foto: Facebook Orquestra Villa-Lobos
Que nossas crianças e jovens toquem mais instrumentos musicais, cantem mais, dancem mais, leiam mais

Os eventos sucessivos de explosões de violência, em nosso país e no mundo, têm escancarado, de maneira irrefutável, o ponto ao qual chegamos no que Freud chamou, em 1926, de “mal-estar da cultura”. Penso que, mais do que um mal-estar, a cultura em que vivemos nesta ultramodernidade parece estar entrando em um colapso, ou muito perto disso.

Falo aqui de cultura em oposição à natureza, dois estados que definem a famosa evolução da humanidade. Saímos do estado de natureza gradualmente, desde que nascemos, através de tudo o que aqueles que chegaram antes nos transmitem. A educação é, em si, neste sentido, um processo civilizatório que nos permite ocupar, a cada dia, um pouco mais nosso lugar no social e assim fazer parte da cultura no tempo e no espaço em que vivemos.

Somos animais desnaturados pelo mundo das palavras. Uma vez que falam conosco, que somos falados, que recebemos um nome e que nos ensinam a falar, somos seres de representação. Contudo, restos de nossa vida instintual – pois não renunciamos completamente a ela – permanecem à deriva em nosso psiquismo, aparecendo em nossos sintomas, tanto corporais quanto relacionais, na nossa vida afetiva e social. 

Por exemplo, a agressividade infantil (e adulta também), em geral, é uma resposta à frustração da satisfação imediata que toda criança enfrenta na sua vida com seus outros, pequenos ou adultos. Ora, a agressividade, esta “resistência ao outro” é necessária, mas precisa ser, como se diz em psicanálise, “sublimada”, transformada em outra coisa. É o que as crianças fazem quando brincam umas com as outras, indo e voltando da realidade, o que faz da experiência estética e lúdica do brincar uma importante forma de sublimação das paixões. A violência não é a agressividade, pois não passa por nenhuma forma de elaboração, são restos arcaicos que não passaram por nenhum processo de elaboração ou sublimação, cristalizaram-se até explodir em atos destruidores, contra si mesmo e/ou contra o outro. É a paixão em estado de pathos. Ou seja, aquilo que teria sido o psiquismo fica perigosamente cristalizado no que conhecemos pelo nome de psicopatia, este distúrbio mental que não deve ser confundido com doença ou transtorno psíquico, que são sofrimentos.  A psicopatia é tudo o que não se submeteu aos constrangimentos que a linguagem, este conjunto de leis comuns, impôs a todos nós através da educação e da nossa experiência humana.

Toda essa descrição que lhes propus até aqui foi para refletirmos sobre a recente tragédia de Blumenau, e nas tantas outras que a precederam, aqui e no resto do mundo, das quais a de Columbine, em 1999, é paradigmática. As ameaças que pairaram e ainda pairam sobre nossas escolas são realmente alarmantes. E as estratégias de defesa são ainda piores, pois atestam a anemia cultural que se abateu sobre nossa sociedade. Armar escolas com policiamento ostensivo é cristalizar a lógica da violência naturalizada, a mesma lógica da qual se sustentam as escolas de tiros para crianças e que até hoje continuam de portas abertas, certamente sem necessidade de policiamento, já que as crianças, ali, sabem lidar com as balas.

E o pior de tudo, é que estamos nos deparando com crianças que se sentem encarregadas, e muitas vezes são, pelos adultos do seu entorno, de vigiar o comportamento de seus coleguinhas. Qualquer coisa estranha, apertar o sinal de alerta para o grupo todo. Fico me perguntando qual criança não tem comportamento estranho se está, necessariamente, descobrindo, reconhecendo o mundo em que vive? Onde vai dar esta paranoia infantil alimentada por adultos supostamente vigilantes que preparam suas crianças para serem, do lado de dentro, tão eficazes quanto o policial militar de prontidão do lado de fora da escola?


"A sublimação é antitética da violência, pois reafirma a vitória do processo civilizatório" / Reprodução

Ao invés de armarmos nossas escolas e transformamos a infância em doença, lutemos por mais escolas como a Villa-Lobos, na Vila Mapa, que há décadas forma cidadãos e cidadãs para viverem em sociedade produzindo cultura. A Orquestra Villa-Lobos é o atestado do quanto a sublimação é antitética da violência, pois reafirma a vitória do processo civilizatório. Não são crianças e jovens sem traumatismos, sem sofrimentos, mas que tiveram a sorte de estar juntos naquela escola, com aqueles professores, onde tudo isso foi possível.

Aliás, o recente Prêmio Internacional de Ciência, em robótica, que outro grupo de alunos da mesma escola acaba de receber corrobora esta ideia de que somente com a cultura estaremos a salvo e protegidos(as) da psicopatia, esta prima-irmã da tragédia, e que tantas vezes sabe ser assassina sem sequer ser parecida com algum sofrimento.

Que nossas crianças e jovens toquem mais instrumentos musicais, cantem mais, dancem mais, pintem mais, leiam mais e estudem mais. Isto fará com que se tornem adultos capazes de educar seus filhos para serem cidadãos que não coloquem em risco a cultura em que vivem.

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre -APPOA, e Presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.         

Edição: Katia Marko