Paraná

Coluna

A derrota de Boric no Chile e algumas reflexões sobre a bandeira da Constituinte

Imagem de perfil do Colunistaesd
A pauta da constituinte surgiu como deságue das lutas massivas e rebeldes encampadas pelos jovens chilenos e pelos trabalhadores, nos meses de outubro e novembro de 2019 - Foto: Susana Hidalgo
A pauta da constituinte surgiu como deságue das lutas massivas encampadas pela juventude chilena

Está repercutindo muito o resultado das eleições das 50 cadeiras do Conselho Constitucional para apresentação de proposta para alteração na Constituição chilena.

O fator mais grave é a aparente vitória da extrema-direita nesse processo, elegendo 23 cadeiras (aumentou uma entre ontem e hoje), entre 50 vagas.

Ao lado da direita tradicional chilena, que obteve 11 votações, a extrema-direita assegura maioria e poder de veto para a redação da nova Carta Constitucional. Os dois blocos – extrema-direita e direita tradicional – precisarão negociar entre si, mas devem apontar unidade para assuntos que interessam.

Dividida em dois blocos, no qual apenas teve expressão a coligação Unidad para Chile, a esquerda obteve 16 cadeiras (reduziu uma de ontem para hoje), sendo a votação mais expressiva do Partido Comunista Chileno. Em eleição obrigatória no país, houve grande quantidade de votos nulos e brancos, que passou de 20%.

Em setembro de 2022, a proposta inicial de texto constitucional havia sido derrotada, em plebiscito, por 61% dos eleitores, quando Boric já era presidente.

Agora, os conselheiros eleitos tomarão posse em junho, quando receberão um projeto que já estava sendo escrito por 24 juristas não-eleitos, em que já se apresentam as linhas gerais do texto. Por sua vez, os conselheiros terão cinco meses para redigir a nova proposta de Constituição, que será submetida a mais um plebiscito em dezembro de 2023.

Constituinte e lutas populares?

O espanto da opinião pública se dá porque a Constituinte chilena aparentemente deveria refletir o interesse dos trabalhadores e enterrar de vez a herança autoritária e neoliberal da constituição do período da ditadura de Pinochet. O que deu errado?

Afinal, a pauta da Constituinte surgiu como deságue das lutas massivas e rebeldes encampadas pelos jovens chilenos e pelos trabalhadores, nos meses de outubro e novembro de 2019.

O estalido dos protestos na época foi o aumento do preço das passagens de metrô, o que logo revelou que havia um acúmulo de grave crise social e rechaço ao governo neoliberal de Sebastián Piñera, que governou o país de 2010 e 2014 e entre os anos turbulentos de 2018 e 2022.

Uma das palavras de ordem mais fortes daquele outubro era “não é por 30 centavos, mas por 30 anos”, referindo-se ao fato de que o país foi um dos principais laboratórios neoliberais do continente, durante e também após a queda da ditadura de Pinochet. No início dos anos 2010, o neoliberalismo na educação foi enfrentado pelo forte movimento dos estudantes secundaristas chilenos, conhecidos como “pinguinos”.

As manifestações populares de 2019 ganharam forte apoio da sociedade. Na mesma medida, sofriam dura repressão por parte do governo e dos carabineros de Chile – polícia militarizada, outra herança autoritária da ditadura neoliberal de Pinochet. Ocorreram prisões massivas, num nível alarmante (em nível comparativo, como se 200 mil ativistas fossem detidos no Brasil) e mais de 400 jovens tiveram os olhos mutilados com tiros de bala de borracha.

Em novembro, como forma de saída para o conflito, a Constituinte foi pautada, carregando consigo a aspiração das lutas nas ruas.

Em contextos e conjunturas diferentes, percebe-se que a bandeira da Constituinte surge em momentos de movimentação popular, crise institucional e protestos massivos. Está diretamente ligada à possibilidade latente de rupturas.

Como vimos no período de pandemia, a bandeira surgiu nas ruas durante protestos populares na Guatemala e durante a queda de ao menos três presidentes no Peru (2021). Podemos remontar ao Brasil de junho de 2013, quando essa foi uma das saídas sinalizadas pelo governo Dilma diante dos protestos. E que as forças populares transformaram em Plebiscito Popular, mas que o novo governo Dilma não encampou no início de seu segundo mandato (2015).

Essa importância da questão Constituinte só pode ser explicada pelo fato de que os parlamentos, nos países da América Latina, estão submetidos ao modelo neoliberal (1) e não apresentam margem de manobra diante das demandas populares. E que os países que conseguiram, pela via eleitoral, mudanças nas condições de vida do povo, o fizeram com mudanças estruturais e constituintes combativas, de ruptura e representativas - caso da Venezuela, Equador e Bolívia.

O maior exemplo dos limites do atual sistema político nos países latino-americanos foi o do Peru, em 2022, no qual, no espaço de um ano, o Congresso peruano buscou destituir o governo de extrato popular de Pedro Castillo desde o seu começo. Os protestos populares naquele país deixaram evidente a insatisfação com instituições que se submetem ao neoliberalismo e que não são capazes de resolver os problemas do povo.

Revés antipopular

No entanto, em conjunturas defensivas, quando as forças conservadoras têm condições de disputar o sentido e o conteúdo da Constituinte, ela pode torna-se desfavorável às pautas populares.

Nesse sentido, o problema não pode ser em si mesmo a demanda por representação das forças populares no processo Constituinte – se pensamos, por exemplo, no papel que os indígenas mapuches representam na luta de classes no Chile -, mas pensar o quanto o processo também deveria estar aliado às pautas econômicas e aspirações dos trabalhadores de forma geral.

Aqui reside o erro central do governo Boric, como aponta o historiador Jonel Manoel: “O governo Boric anunciou um programa econômico de retomada no contexto de ‘pós-pandemia’ que equivale a 1% do PIB, ou seja, praticamente nada”, escreveu em abril de 22.

A eleição de Boric, no final de 2021, havia trazido esperanças ao derrotar o extremista de direita, Kast. Contava com importante espaço, uma vez que o neoliberal Piñera deixava o poder desgastado, com baixa aprovação (cerca de 14%), e após protestos devido à carestia gerada por seu governo na época da pandemia.

Porém, os sinais invertidos de Boric no que se refere à economia, a ausência de disputa do controle soberano dos recursos naturais, e uma tentativa de gestão neoliberal com rosto humano e representativo, permitiram que a extrema-direita seguisse disputando o conteúdo da Constituinte, fazendo sua propaganda, até que houve o revés e a votação pelo rechaço ao novo texto constitucional.

A lição inicial para as forças populares a partir de um processo complexo chileno parecem ser a necessária crítica ao sistema político aliada à luta antineoliberal; o aprofundamento do trabalho de base permanente, fortalecendo os canais populares de comunicação; e a conformação de frente popular e de esquerda no interior das alianças para derrotar o fascismo. Abandonar as lutas econômicas e por melhores condições de vida ao povo é combustível pra crescimento do discurso neofascista.

As experiências de Brasil, Chile, Argentina, Bolívia, Peru e Paraguai, com suas diferentes conjunturas, têm apresentado uma extrema-direita atuante nos países, mobilizada nas redes e nas ruas, capaz de pressionar governos progressistas que não conseguirem romper o cerco neoliberal imposto desde o seu início.

Como é da luta de classes que estamos falando, soou digno de tragédia o pedido do presidente Boric à extrema-direita por “sabedoria e moderação”. Na prática, certamente será respondido com ataques às bandeiras e aos direitos populares. Não cabem mais, neste quadrante da História, ilusões institucionais no marco do modelo neoliberal.

 

 

 

REFERÊNCIAS:

1) Em seu programa estratégico de 2007, a organização Consulta Popular já apontava os limites da democracia formal em nosso continente, submetidas a um programa econômico neoliberal, sem margem de manobra: “No continente latino-americano, a política de dominação imperialista se dá em torno de três eixos centrais. No eixo político, pela afirmação das “democracias representativas” formais como única forma legítima de governo em nosso continente. No eixo econômico, por meio da estratégia configurada pela proposta da Alca, que envolve acordos bilaterais e sub-regionais e articulações na OMC. No eixo militar, pela ampliação substancial da presença de bases militares e do controle das forças armadas de cada país”

https://girolatino.headline.com.br/ultradireita-tera-ate-poder-de-veto-na-constituinte-do-chile-4e8548bb

https://aterraeredonda.com.br/a-encruzilhada-chilena/

https://rebelion.org/eleccion-constitucional-el-momento-caotico/

https://www.jornada.com.mx/notas/2023/05/09/mundo/ajuste-de-resultados-en-chile-da-un-consejero-mas-a-la-ultraderecha/?from=page&block=mundo&opt=articlelink

https://disparada.com.br/chile-extrema-direita-constituintes/


 

Edição: Lucas Botelho