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CRÔNICA. Vivas memórias operárias

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Temos que reunir os fragmentos de nós mesmos para resistir. Assim como os mais velhos têm reunido os fragmentos de suas memórias mais significativas - Pedro Carrano
Meu pai não estava com os bolsos cheios de pedras, apenas algumas

Numa roda de conversa, criada de improviso, no meio da rua, reunindo Irma e Jussara, duas moradoras do bairro que se encontraram perto do mercado, me dei conta de que elas possuíam um laço forte e comum. Mais do que apenas morar na mesma região, as duas mães e avós foram operárias de uma fábrica de botões, no bairro Novo Mundo.

O ponto em comum entre essas duas vidas surgiu no meio da conversa, quando uma delas recordou os tempos da Diamantina Fossassene, uma das maiores fábricas da América Latina. Hoje, é uma estrutura gigantesca abandonada ao mato alto e desprezada até mesmo pelos cães. A empresa faliu, foi recuperada pelos trabalhadores, numa das poucas experiências de fábricas autogeridas no sul do Brasil. Pouco tempo depois, em 2006, o dono da massa falida recorreu ao uso da força e pagou uns tantos leões de chácara pra expulsar os trabalhadores dali.

Desde então, cada trabalhadora seguiu sua vida, passou pelo desemprego, experimentou outros trampos. Durante aquela memória que surgiu ao acaso entre nós, na roda de conversa, fiquei pensando em como o trabalho define profundamente nossa identidade e memória, mesmo se essa lembrança for rasgada pela realidade do desemprego e de um final com ar de tragédia, quando patrões quebraram ou decidiram mudar os investimentos para outra direção, deixando os trabalhadores numa situação difícil.

O melhor filme que pra mim traduz essa situação é “Segunda-feira ao Sol”, uma história de trabalhadores espanhóis, anos depois de uma greve contra o fechamento de estaleiros que se mudaram pra outro país. Traduzindo então a ideia de uma "memória trabalhista" pra minha vida pessoal, foi inevitável volver aos 12, ao ano de 1993, quando meu pai, corretor de imóveis à época, chegou em casa com uma camisa da seleção brasileira novinha, não recordo o número, molhada pelo que seria o champanhe de alguma comemoração:

- Ganhamos um carro!

- Como assim?

Atônito com a notícia do automóvel, mesmo assim eu quis sondar um pouco mais sobre a camiseta adquirida. Afinal, nossos sonhos eram guiados pelo time que jogaria em breve a Copa do Mundo. Romário, Bebeto, Viola, eram os donos do imaginário da nossa geração, ansiosa por acompanhar pela primeira vez uma Copa do Mundo. Logo depois meu pai explicou melhor que houve uma espécie de festa da construtora para a qual vendia apartamentos, e um sorteio apostava a sorte ao contrário. Afinal, quem era chamado era eliminado, e cada vendedor tinha certo acúmulo de pedrinhas segundo a quantidade de vendas. A construtora era recente, muito nome e propaganda, gerando um clima entre nós de prosperidade e algo que finalmente podia dar certo.

Meu pai não estava com os bolsos cheios de pedras, apenas algumas. Outros vendedores estavam com muito mais créditos. Ele nunca imaginaria que poderia vencer, por isso estava distraído conversando com os amigos, até que alguém veio lhe questionar e avisar que ele estava entre os cinco últimos.

Com gritaria, bebida e comemoração, meu pai acabou sendo o último a ser chamado, e o primeiro a ganhar um Corsa – carro recém-lançado na época - substituindo nosso velho Chevette que se arrastava ainda pelas ruas.

Tempos depois, a construtora, que parecia ir de vento em popa, quebrou e fato é que a demora na entrega do carro impediu que o sonho daquela madrugada se materializasse, revelando, mesmo antes da bancarrota, uma profunda desconsideração da empresa com a gente. Na empolgação daqueles vendedores e suas pedrinhas, quanta dedicação e suor estavam expressos? O carro era um engodo que não traduzia aquele amontoado de trabalho vivo. Ao menos, a decepção de meu pai talvez tenha nos aberto os olhos para a realidade mais concreta.

Porém, o quanto guardamos, eu e minha família, da alegria e expectativa daquela madrugada dentro de nossas vidas? O trabalho, os colegas, nossa especialização, os contextos e narrativas nos habitam.

E fico me perguntando o quanto essas coisas vão ficando comprimidas, uma vez que o desemprego, a precarização e informalidade, as contratações individuais que fazem com que hoje cada um de nós se sinta seu próprio empreendimento, retirem esse sabor coletivo de nossas memórias ligadas ao nosso trabalho, ligadas à luta, ligadas à memória, que é sempre coletiva, mas enfrentamos a dispersão e a fragmentação cada vez mais.

Temos que reunir os fragmentos de nós mesmos para resistir como trabalhadores que somos. Assim como os mais velhos têm reunido os fragmentos de suas memórias mais significativas. Naquela manhã, foi gratificante escutar as memórias de duas operárias de uma fábrica de botões.

 

 

Edição: Lucas Botelho